Painel II

A Qualidade em Educação: um conceito necessário à mudança

A QUALIDADE: UM PLURAL DIFUSO...

VALTER LEMOS*

Na minha perspectiva, a avaliação é uma actividade que, tendo uma importância política significativa, ainda se situa na margem entre a ciência, a técnica e a política. Avalia-se normalmente para determinadas audiências. E, portanto, nesse sentido é uma actividade política. Mas faz-se segundo determinadas técnicas sistemáticas e, nesse sentido, é uma actividade técnica e científica. O mesmo já não direi relativamente à qualidade. Na minha perspectiva, este conceito de qualidade é um conceito eminentemente político e tem muito pouco que ver com a abordagem científica ou a abordagem técnica dos problemas. É por aqui que vou começar e é exactamente aqui que vou acabar.

Tentei dar uma vista de olhos em alguma literatura mais relevante nesta matéria e, curiosamente, verifiquei que a maioria da literatura publicada tem obviamente uma conotação política, deriva de abordagens políticas, por vezes abordagens sociológicas, mas não entra normalmente por outras áreas, no que à qualidade de educação respeita.

Outra questão que se me colocou foi porquê falar agora da qualidade? O problema da qualidade é um problema que se coloca, penso eu, desde sempre. Não acredito que os nossos antecessores, os anteriores decisores políticos, os anteriores professores e técnicos, etc., não tivessem o problema da qualidade, e não tivessem colocado sistematicamente o problema da qualidade. Estas questões não emergem agora, estiveram sempre presentes, com certeza. Porquê agora falar delas com muita mais intensidade? Eu creio que há aqui um aspecto que tem muito que ver com a necessidade do novo. A necessidade de criar novos conceitos e novas linguagens é permanente.

Noutro dia, numa conferência internacional, um especialista de um outro país situava a educação nas últimas décadas, e falava no tempo da democratização, no tempo da inovação, no tempo da avaliação e hoje estaríamos no tempo da qualidade. Eu achei interessante porque, na minha perspectiva e na minha cabeça, essas

* Instituto Politécnico de Castelo Branco

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questões misturavam-se todas e não as conseguia visionar temporalmente isoladas. Esta vertigem do novo tem que ver, obviamente, com o tempo que vivemos e cria, na minha perspectiva, uma dificuldade muito grande às questões educativas e ao sistema educativo. Cria uma enorme dificuldade porque as questões educativas, como já foi dito aqui, são longitudinais, e o processo educativo, sendo um processo longitudinal, dá-se muito mal com a vertigem do novo. A vertigem da novidade constante desestrutura habitualmente as organizações que têm como finalidade um processo que é longitudinal e que se prolonga no tempo.

É por isso que, na minha perspectiva, hoje estamos a assistir a uma certa desestruturação do sistema escolar, que era provavelmente dos sistemas mais bem estruturados das sociedade ocidentais. E, já agora, uma nota: a recente Declaração de Bolonha, no âmbito do ensino superior, entre outras coisas, interpreto-a como uma necessidade de tentar reestruturar uma desestruturação progressiva dos sistemas de ensino superior, e que aconteceu mais no ensino superior do que no ensino básico e secundário, nos contextos europeus, por razões simples. O básico e o secundário estão sob uma maior tutela central, e, portanto, mais controlados, e os sistemas de ensino superior têm, por tradição, mais autonomia. Portanto, como tal, obedecem mais ao segundo princípio da termodinâmica e, portanto, faz-se sentir mais o aumento da entropia.

Esta desestruturação, na minha perspectiva, coloca no centro das preocupações o problema da avaliação. Sempre se avaliou, avalia-se todos os dias, avalia-se a toda a hora, a avaliação está inerente à noção de escola desde a criação das escolas públicas, etc.. A centragem actual nas questões da avaliação, no entanto, tem muito que ver com uma preocupação, consciente ou não, relativamente a uma progressiva desestruturação do sistema escolar. E, desta noção de avaliação, parece ter-se derivado para uma questão da qualidade.

Eu tenho imensas dúvidas sobre o conceito da qualidade. Aliás, creio que hoje várias vezes se abordou em sentidos muito diferentes.

Uma ideia que satisfaz todos, um conceito cujo termo designativo é usado por todos, pensando coisas diferentes, normalmente dá maus resultados. Aliás, algumas das tragédias da história aconteceram por causa disso. O conceito de qualidade é extraordinariamente dúbio. A utilização do conceito, não só por parte dos políticos e dos decisores, mas também por parte dos académicos, dos professores, etc., sem um esforço claro de delimitação e de caracterização do mesmo, pode tornar-se perigosa.

A QUALIDADE: UM PLURAL DIFUSO...

Com uma certa “costela” positivista que vem da minha formação, eu diria que nas ciências que aprendi nunca se falava da qualidade. Falava-se sempre em qualidades. Qualidades são atributos. Qualidade era uma coisa que estava erradicada da linguagem das ciências que eu aprendi na Universidade, porque, como dizia um velho mestre, qualidade é plural difuso. Creio que, quando aplicada às questões de carácter social, como neste caso a educação, este problema de ser demasiado difuso é bem maior. Por isso mesmo, tenho sinceras dúvidas sobre a possibilidade de definição de políticas centradas na qualidade, sem haver uma prévia clarificação do conceito. No caso da educação, coloco aliás algumas dúvidas sistemáticas que a mim me ajudam a reflectir sobre a definição do problema, e que são estas: por exemplo, um sistema escolar ou educativo, uma sociedade se quisermos em que todos tenham acesso à escola, é um sistema educativo com qualidade ou não? A resposta a esta pergunta pode ser colocada seguidamente com uma nova pergunta: num sistema educativo onde uma parte significativa de alunos não atinge aquilo que é considerado oficialmente os requisitos mínimos dos programas escolares, tem ou não qualidade? Mas o que é mais interessante é que é possível ter as duas coisas ao mesmo tempo!

O Dr. António Fazendeiro falou num triângulo educativo que tinha a equidade, a relevância e a eficácia. A verdade é que, quando nós olhamos para esse problema somente numa perspectiva de estudo, ele é interessante, mas, na perspectiva dos actores educativos, ele não tem significado. Os actores educativos têm obviamente uma expectativa sobre o resultado do sistema educativo e sobre o funcionamento da escola que é significativamente diferente. A questão que se coloca é esta: será que os indicadores de qualidade, aquilo que representa a qualidade, seja lá o que for, é o mesmo para os professores e para os pais? É o mesmo para os empresários? Para a Igreja? É o mesmo para os media? É o mesmo para os alunos?

(Curiosamente, tentei também fazer uma pequena pesquisa sobre a investigação centrada nos alunos, relativamente aos problemas das representações destes sobre as questões da qualidade do ensino e da qualidade das escolas. Tenho que dizer que não encontrei praticamente nada. Encontrei algumas sobre as representações dos professores, mas sobre as representações dos alunos não encontrei praticamente nada).

Admitindo que conseguimos definir um conjunto de indicadores que nos permita, a partir deles, ter resolvido o problema, e ter operacionalizado o conceito de qualidade, a questão que se nos coloca a seguir é realmente fazer a avaliação dos indicadores, ou seja, recolher os dados necessários sobre esses indicadores e emitir os julgamentos necessários sobre esses dados. E aí levanta-se um novo problema. Na

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minha perspectiva, não há avaliação sem uma definição rigorosa do objecto. Sendo que em avaliação se trabalha como em investigação, recolhendo dados e tratando-os, a verdade é que há uma diferença fundamental: os avaliadores têm que sujar as mãos porque trabalham para audiências específicas, que é aquilo de que estão dispensados os investigadores.

Há, pois, duas condições fundamentais para a avaliação: uma, definir o objecto, porque sem objecto é impossível fazer a avaliação, e a outra é definir a audiência, porque o problema é que a selecção dos dados e do respectivo tratamento têm exactamente que ver com as respostas às audiências escolhidas. E, portanto, este problema da escolha das audiências é uma questão fundamental, porque coloca, desde logo, alguns dos maiores dilemas da questão educativa, como, por exemplo,

o dilema entre a democratização, que é uma questão que me é muito cara, e a elitização do sistema educativo. Aliás, acho curioso, por exemplo, que o discurso tenha mudado de democratização para massificação. Porque, quando se utiliza a palavra democratização e quando se utiliza massificação, será que o nosso conjunto de indicadores relativamente à qualidade é o mesmo? Ou muda o conjunto de indicadores? Por facilidade de percurso, nós tendemos a centrar a avaliação nos meios, porque são os mais inócuos. Centramos a avaliação nos meios, porque temos dificuldade em definir as audiências, temos dificuldade em definir os resultados, mas os meios servem a todos, e, além do mais, seguimos um paradigma central em que acreditamos, é que há uma relação lógica e racional entre os meios e os fins. Ou seja, partimos de um pressuposto de que a teoria do campo unificado em educação está conseguida, e, portanto, que há uma relação entre os meios e os fins, e, como tal, conseguimos que, centrando nos meios, podemos tirar ilações relativamente aos fins. Assim, dizemos estar a avaliar os fins, quando só avaliamos os meios.

Só mais um exemplo desta prática. É o exemplo precisamente do problema que está mais presente no público, que é problema do acesso ao ensino superior (até porque eu sou administrador de uma instituição do ensino superior e, portanto, debato-me com este problema todos os dias). Ainda hoje se falou aqui nas listas dos resultados obtidos nos exames de acesso ao ensino superior. O que é extraordinariamente curioso e, é preciso dizer, que foi pacificamente aceite pela sociedade portuguesa, incluindo pela esmagadora maioria dos académicos e dos professores em geral, é que aquela lista foi aceite como uma lista de indicadores de qualidade. Podíamos não dizer qual a qualidade, mas era inequivocamente uma lista de indicadores de qualidade. O resultado dos exames das provas de acesso do ensino superior é um indicador de qualidade.

A QUALIDADE: UM PLURAL DIFUSO...

Ora, não vou aqui agora discutir o problema, a colega Glória Ramalho já teve a oportunidade de explicar como é que as provas são feitas. Haverá, com certeza, matéria a ter em linha de conta nessa área. Mas dava só um exemplo e um exercício, que é este: há um conjunto de resultados dos alunos, nas várias disciplinas, e na média das disciplinas ao nível do 12.º ano nos exames do ensino secundário. Simultaneamente ouvimos aqui a colega Carmo Clímaco dizer que a Inspecção Geral de Educação tinha feito um estudo de avaliação integrada das escolas, onde tinham sido analisados uma série de factores, e que dessa avaliação integrada tinha resultado que, se eu não estou enganado, 2% das escolas estariam seguramente acima dos padrões esperados, e cerca de 20% das escolas abaixo. E uma das questões interessantes seria esta: na lista das escolas dos exames do ensino secundário, onde é que estão situados os 2% que na lista da Inspecção Geral estavam nitidamente acima das outras escolas, isto é dos resultados obtidos para as outras escolas?

Há coincidência ou há divergência? A minha convicção é que há divergência. Não sei se elas estão aqui neste momento, se podem dar resultados sobre isso, mais tarde. Mas é essa questão que nos coloca essencialmente o problema da qualidade, porque, na prática, o problema da qualidade coloca-se, não relacionado com as características das escolas, dos professores ou dos alunos em si, mas sim, com as expectativas que nós temos, relativamente ao que eles devem ser. É por isso que, na minha perspectiva, as questões da qualidade se situam eminentemente num quadro político, e de não todo em todo, num quadro técnico e científico. É por isso também que eu não acho que podem ser avaliadas tecnicamente as políticas, nem acho que possa ser avaliado tecnicamente o sistema.

Assim, ao nível das políticas, o que é que nós podemos avaliar? Como já foi aqui dito, podemos avaliar os alunos, ou pelo menos a aprendizagem dos alunos, os professores, os recursos, os projectos, os currículos, as escolas. Agora, a avaliação das políticas, obviamente, que é, na minha perspectiva, a essência do regime democrático, e a avaliação das políticas faz-se nas próprias vivências democráticas. Tentar substituir isto por uma perspectiva técnica e institucionalizada, é claramente tentar substituir uma democracia por uma tecnocracia. Eu diria que, se formos capazes de fazer a avaliação de espaços bastante mais pequenos, e de objectos bastante mais bem delimitados, creio que isso dará uma contribuição efectiva para avaliação das políticas.

Última nota para acabar neste momento. É que tenho notado que, desde que se começou a falar muito de qualidade no sistema educativo português, a confiança social nas escolas baixou. E este problema é um problema que tem que ser enquadrado. Porque eu lembro-me de uma conversa que tive com o Professor

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Marçal Grilo, pouco tempo depois de ele ser Ministro, sobre uns dados que tinham sido publicados nessa altura no Diário de Notícias, em que ele estava muito satisfeito, porque num observatório, que aliás, penso que continua a fornecer dados, os portugueses diziam que a escola era a instituição que lhes merecia maior confiança, à frente dos hospitais, dos tribunais, etc., etc., e os professores estavam no topo das profissões que inspiravam confiança aos portugueses. O que acontece é que, desde que se iniciou, na minha perspectiva, na sociedade portuguesa, o debate sobre a qualidade, assim dito, baixou significativamente a confiança social dos portugueses sobre a escola. E, obviamente, na minha perspectiva, isto mostra que as grandes mudanças, não se fazem, não ocorrem pelas avaliações em si mesmas, ocorrem pelas expectativas que os actores têm sobre elas. E, portanto, é por isso que este problema da qualidade é essencialmente um problema político, e assim, nesse sentido, é realmente um conceito fundamental à mudança.

A AVALIAÇÃO DO SERVIÇO PÚBLICO DE EDUCAÇÃO:

DIREITO DO CIDADÃO E DEVER DO ESTADO

NATÉRCIO AFONSO*

Opresente texto analisa as políticas de promoção da avaliação externa das escolas, no quadro do processo de “reestruturação do Estado” e do desenvolvimento das abordagens gerencialistas à formulação das políticas educativas e à administração da educação.

Procede-se a uma análise da especificidade da situação portuguesa e identifica-se o quadro dos valores fundamentais da democracia que constituem referentes políticos para o desenho técnico dos dispositivos de avaliação.

A avaliação da qualidade do serviço público de educação é entendida como um direito do cidadão e um dever do Estado, assegurada por um instituto público com plena autonomia institucional e um corpo profissional especializado que garantam a credibilidade dos resultados publicamente reportados.

A CRISE DO ESTADO-PROVIDÊNCIA

A partir do último quartel do século XX, os países ocidentais têm conhecido profundas transformações das estruturas e práticas da governação, num processo geralmente designado por “reestruturação do Estado”. Este processo decorre de tendências pesadas da evolução económica, social e cultural, identificáveis em todo

o espaço ocidental, embora com especificidades próprias em cada país.

Uma dessas tendências tem sido a globalização da economia, com a consequente redução da capacidade dos Estados nacionais pata definirem autonomamente as suas opções de política, minando a sua legitimidade e credibilidade.

Outro elemento deste processo tem sido o descrédito crescente das burocracias estatais. A expansão do intervencionismo do Estado durante os “Trinta Anos

* Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa

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Gloriosos” (1945-1975) deu origem à formação de pesadas estruturas de administração pública, progressivamente associadas a uma imagem de ineficácia, despesismo e insensibilidade ao interesse público.

Um terceiro aspecto tem sido identificado com a ruptura do chamado “status quo keynesiano” que serviu de matriz para as políticas públicas nos países ocidentais desde o pós-guerra até aos anos 70. O princípio central do keynesianismo centravase na promoção da intervenção do Estado ao nível da procura, por forma a garantir

o pleno emprego com crescimento económico contínuo, na tradição do New Deal de Roosevelt.

No plano estratégico, após a crise económica dos anos trinta e a vitória sobre o fascismo, este “compromisso social-democrata” constituiria a resposta política ocidental à proposta totalitária do Estado Soviético.

Finalmente, vários autores sublinham o efeito da crescente complexificação e fragmentação das sociedades ocidentais nas pressões para a reestruturação do Estado. Na verdade, assiste-se a uma desconstrução progressiva dos agregados nacionais, visível em várias dimensões:

a) padrões de comunicação mais complexos, entre os indivíduos e entre os grupos;

b) o impacto das tecnologias da informação e comunicação na vida cívica,

promovendo a deslocalização e a precarização das relações, do consumo e do

trabalho; c) a consolidação de uma cultura de consumo robusta, sobre a qual se organiza todo

o quotidiano (o consumo substitui a produção como ponto focal da vida social); d) a multiplicação das dúvidas da pós-modernidade sobre antigas certezas epistemológicas, expressas na crise do positivismo e do funcionalismo; e) a generalização da flexibilidade das práticas sociais patente na diversidade de valores e padrões de comportamento (estilos de vida, orientação sexual, etc.);

f) o aparecimento de novos movimentos sociais actuando nos espaços nacionais numa lógica transnacional.

Esta crescente complexidade das sociedades ocidentais é identificada por Luhmann (1993) como um limite incontornável à intervenção reguladora do Estado, criando-se um contexto em que o sistema político tende a ser entendido numa lógica de horizontalidade em relação a outros sistemas (económico, jurídico, etc.), o que reduz a sua função tradicional de meta-regulação da vida social, pela via do seu posicionamento “vertical” em relação aos outros sistemas.

A AVALIAÇÃO DO SERVIÇO PÚBLICO DE EDUCAÇÃO: DIREITO DO CIDADÃO E DEVER DO ESTADO

Em síntese, a crise do Estado-Providência expressa a globalização da economia, o desprestígio das burocracias estatais, a ruptura do compromisso keynesiano, a implosão do Estado Soviético e a complexificação das sociedades ocidentais com os seus impulsos fragmentários. As novas políticas públicas ditas “neoliberais” são a expressão desta crise e pressupõem um projecto radical de “reestruturação do Estado” com profundas implicações no domínio da provisão do serviço público de educação.

O GERENCIALISMO EMPRESARIAL NA ADMINISTRAÇÃO DA

EDUCAÇÃO

Na formulação das políticas educativas e na administração da educação, a expressão do projecto político “neoliberal” tem-se concretizado através de uma nova abordagem à provisão do serviço, influenciada pela gestão das organizações económicas e habitualmente designada por gerencialismo empresarial (Taylor et al., 1997).

Na tradição da burocracia weberiana, os dispositivos tradicionais da administração pública centram-se na preocupação com a correcção dos procedimentos e a orientação por regras. O objectivo central é o cumprimento do normativo e o respeito pelas formalidades, pressupondo-se que a qualidade da provisão do serviço está contida na substância das normas pre-definidas.

Com o gerencialismo empresarial pretende-se a adopção de estruturas e práticas idênticas às do sector empresarial, tidas como mais maleáveis e com maior capacidade de adaptação à mudança. O que importa não são as regras e o formalismo, mas sim o desempenho e os resultados. A qualidade da provisão do serviço concretiza-se através da definição da missão estratégica, de objectivos operacionais, e da avaliação da sua concretização através de indicadores de desempenho.

Na lógica do gerencialismo empresarial, cada escola deve definir e executar o seu próprio plano de desenvolvimento de acordo com a missão, os objectivos, os recursos disponíveis e o contexto, em vez de se limitar a assegurar a prestação do serviço na forma prescrita pelo Estado, como acontece na lógica da burocracia estatal. As escolas definem as suas metas obedecendo apenas a uma estrutura de tutela política, com princípios e objectivos gerais definidos pelas autoridades governamentais.

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A provisão de recursos financeiros, com dotações globais directa ou indirectamente indexadas ao número de alunos, e a “maleabilidade” na gestão dos recursos humanos, em especial no que respeita aos docentes, são corolários habitualmente associados a esta abordagem gerencialista. Por outro lado, são criadas nas escolas estruturas de decisão, numa lógica de participação social e de envolvimento comunitário, através das quais se pretende instituir dispositivos de controlo social dos profissionais, como meio de garantir a prestação de contas e de contrariar as derivas corporativas próprias das burocracias profissionais, tal como são caracterizadas por Mintzberg (1990).

Finalmente, todo este dispositivo pressupõe o desenvolvimento de acções de auditoria e de avaliação do desempenho, em termos da consecução dos objectivos e da adequada utilização dos recursos disponíveis. Trata-se de responsabilizar publicamente as escolas pela concretização da sua missão, isto é, levá-las a prestar contas sobre a actividade desenvolvida. Na lógica da burocracia estatal, as escolas respondem perante o Estado, e é este que responde publicamente pelo serviço de educação prestado pelas escolas. Na lógica do gerencialismo empresarial, pretendese que a escolas respondam publicamente pelo serviço que prestam, reforçando-se assim a sua responsabilização directa perante os cidadãos. Desta forma, o gerencialismo empresarial promove uma reconfiguração dos papéis da administração educativa, libertando-a da responsabilidade pela prestação directa do serviço e concentrando-a na definição de políticas globais, de planos de desenvolvimento estratégico, na provisão global de recursos e na avaliação externa do desempenho das escolas.

A INFLUÊNCIA GERENCIALISTA NA ADMINISTRAÇÃO DA EDUCAÇÃO EM PORTUGAL

Em Portugal, a administração da educação revela especificidades peculiares que combinam a lógica tradicional do Estado Educador responsável directo pela prestação do serviço, com uma outra lógica autogestionária, expressão do poder das burocracias profissionais no governo das escolas públicas, nascida durante o processo revolucionário que se seguiu ao 25 de Abril. Esta combinação resulta de um status quo cristalizado a partir de 1976 e configura um modelo híbrido com elementos aparentemente contraditórios. Assim, a pesada estrutura de administração central e regional, a extrema regulamentação formal e o controlo inspectativo de feição normativista articulam-se de modo flexível com a estrutura corporativa e as práticas informais da direcção colegial das escolas, onde a refracção estratégica da pressão normativa externa se concretiza numa gestão operacional opaca e informal e na ausência de dispositivos de participação comunitária e de prestação de contas.

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Este status quo sobreviveu durante os últimos vinte e cinco anos, graças ao contexto da expansão tardia da escola de massas que dominou todo esse período. O reconhecimento tácito do poder fáctico dos docentes permitiu a governabilidade do sistema que o gigantismo da administração educacional não estava em condições de poder assegurar (Afonso, 1999). Durante este período, a administração da educação centrou-se no crescimento rápido da oferta e consequente expansão da despesa pública. Só nos anos 90, a despesa pública em educação, em percentagem do PIB, passou de 4.3 em 1990 para 5.8 em 1997 (OCDE, 2000).

Contudo, ao longo dos anos 90, a própria expansão da escolarização acentuou a crise de confiança na escola, nomeadamente no que se refere ao seu valor simbólico mais poderoso, como veículo de mobilidade social. A expansão das classes médias promovida e sustentada pelo compromisso keynesiano teve o efeito paradoxal de reduzir o papel da escola enquanto instrumento seguro de promoção social. No contexto da escola de massas, com as taxas de escolarização a aproximarem-se dos 100%, a mobilidade social ascendente deixa de depender do simples acesso à escola pública e passa a centrar-se na diferenciação e selecção no seio da escola pública, ou, em alternativa, na escola privada. A questão da “qualidade” ganha assim uma acuidade particular para as classes médias e para os estratos e grupos que desenvolvem activamente estratégias de mobilidade social com base nos diplomas escolares. Nesta perspectiva, o importante já não é ter “certo” o acesso à escola. Para as classes médias, essa conquista está feita com a escola de massas, mesmo que as taxas de abandono e de repetência permaneçam elevadas. O que passa a ser importante é ter acesso a uma “certa” escola, ou seja, uma escola de “excelência”, com uma boa imagem pública e bem posicionada nos rankings dos resultados escolares.

Paralelamente, tem-se assistido a uma descredibilização do valor simbólico da escola pública, patente na degradação da sua imagem associada à violência, à indisciplina, à insegurança, à falta de autoridade, ao facilitismo e ao “desgoverno”, de que as recentes “manchetes” sobre a “pausa escolar” são um bom exemplo. Neste contexto, as propostas do gerencialismo empresarial no sentido de reconfigurar o status quo da administração escolar, por intermédio da promoção da autonomia e da avaliação externa das escolas, constituem tentativas para reconstituir o prestígio da escola pública aos olhos das classes médias, tentando estancar a fuga em curso para as escolas privadas e as crescentes pressões de natureza financeira de que as propostas do cheque-educação são um exemplo paradigmático.

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Deste modo e paradoxalmente, a escola pública de massas enfrenta um processo de desconstrução inverso ao da sua própria história recente, caminhando para uma crescente diversificação e reproduzindo no seu seio as antigas clivagens sociais (Afonso, 2000).

Em termos mais analíticos, a proposta gerencialista de reconfiguração da gestão escolar está patente nas seguintes linhas de força da política e da administração da educação, concretizadas na legislação aprovada em 1998, mas com raízes que remontam ao processo reformista desencadeado pela aprovação de Lei de Bases do Sistema Educativo, em 1986:

a) maior formalização da gestão escolar (redução da opacidade e da informalidade nas práticas de gestão, de que a obrigatoriedade de regulamentos internos formalmente aprovados é um exemplo);

b) novos actores externos na administração da escola (aumento da visibilidade e da exposição pública da gestão escolar); c) menor pressão regulamentadora, visando aumentar a capacidade de decisão e a responsabilização pública da gestão escolar;

d) pressão para a formalização de modalidades de gestão estratégica que possam constituir-se como padrões de referência para a exigência da prestação de contas (projecto educativo, projecto curricular, plano de actividades).

No plano da promoção da avaliação externa, o inventário das linhas de força da política educativa inclui necessariamente: a) a restauração dos exames nacionais para conclusão do ensino secundário que

tinham sido abolidos no início dos anos 80; b) o lançamento de provas aferidas no final de cada ciclo do ensino básico; c) a criação de um serviço do Ministério da Educação expressamente voca

cionado para a realização da avaliação externa dos resultados escolares (o Gabinete de Avaliação Educacional, GAVE);

d) a reorientação da actividade da Inspecção-Geral da Educação (IGE), deixando de se centrar exclusivamente no controlo da conformidade normativa para passar a incluir actividades de avaliação externa, de que o programa de “avaliação integrada das escolas” é um exemplo.

Em síntese, as novas políticas educativas de pendor gerencialista, centradas na promoção da autonomia e da avaliação externa, correspondem a uma estratégia de revalorização da imagem da escola pública junto das classes médias, acompanhando a evolução dos seus interesses estratégicos, no novo contexto criado pela expansão da escola de massas (Tomlinson, 2001).

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CRITÉRIOS DE QUALIDADE NA PROVISÃO E NA AVALIAÇÃO DO

SERVIÇO DE EDUCAÇÃO

A avaliação do desempenho das organizações escolares é uma questão eminentemente política, e por isso não pode ser reduzida à tecnologia dos procedimentos e instrumentos. O discurso crítico que põe em causa a avaliação externa, sublinhando as reais limitações dos dispositivos de avaliação, a efectiva ambiguidade do conceito de qualidade e a subjectividade inerente ao processo avaliativo, expressa uma deriva tecnocrática e ignora (ou finge ignorar) que a avaliação é uma démarche eminentemente subjectiva, construída a partir de valores de referência que devem ser expressamente assumidos.

No contexto de uma sociedade democrática onde coexistem legitimamente interesses divergentes e mesmo antagónicos, a definição e a avaliação de critérios de qualidade assumem uma natureza necessariamente contraditória. Contudo, qualquer que seja a aproximação à teoria da democracia, existe sempre o pressuposto de um bem comum e do interesse público. É justamente a partir da definição do interesse público que se constrói o conceito de qualidade na prestação dos serviços públicos e nomeadamente na educação.

A noção do interesse público pressupõe assim a consideração de valores essenciais que norteiam a gestão pública nos regimes democráticos e que constituem o ponto de partida para a construção dos padrões de referência na avaliação das políticas públicas.

Equidade (justiça na distribuição dos recursos educativos, de modo a promover a igualdade), eficiência (adequada rentabilização dos recursos públicos disponíveis, value for money, liberdade (controlo dos cidadãos sobre a provisão do serviço) e eficácia (nível elevado da concretização das aprendizagens) são os valores tradicionalmente reconhecidos como referenciais da construção das políticas educativas, da administração da educação e da gestão das escolas (Sergiovanni et al., 1987).

Na realidade, existe uma tensão permanente entre estes quatro valores, no sentido em que uma acentuação excessiva de um deles implica necessariamente o menosprezo pelos restantes. Por exemplo, a sobrevalorização da liberdade (total controlo local sobre a escola, escolha livre da escola pelos pais, etc.) pode ter efeitos nocivos em termos de equidade. Por outro lado, uma excessiva preocupação com a equidade pode pôr em causa a eficácia do sistema. Um acento tónico exagerado na eficiência pode ter efeitos nocivos em termos de equidade, etc.

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O debate sobre as políticas educativas concretas não é mais do que o conflito entre perspectivas diferentes do equilíbrio entre estes valores fundamentais.

Na avaliação das políticas educativas nacionais e de escola, e das práticas de administração educacional e de direcção e gestão escolar, a equidade, a eficiência, a liberdade e a eficiência constituem os valores fundamentais de referência para a construção técnica dos critérios de avaliação e dos respectivos campos de observação e indicadores de desempenho.

A AVALIAÇÃO DA QUALIDADE PELOS SERVIÇOS DE INSPECÇÃO

Nos últimos anos têm sido desenvolvidas múltiplas baterias de parâmetros e indicadores, no âmbito de linhas de investigação sobre a eficácia e o desenvolvimento da escola (school effectiveness e school improvement). Um bom exemplo é a listagem desenvolvida pela SICI (Standing International Conference of Central and General Inspectorates of Education), uma organização de cooperação entre instituições de inspecção da educação de diversos países europeus, no âmbito do projecto “Indicators for good school” (Deketelaere, 1999). Esta listagem inclui 25 indicadores organizados em auatro campos de análise (resultados da escola, processos de ensino-aprendizagem, gestão escolar e contexto-input). A maior parte dos indicadores implica ainda a operacionalização de variáveis próximas de factos susceptíveis de serem observados e interpretados. Nestas variáveis são definidos padrões de referência a partir dos quais se identificam níveis de concretização que permitem a formulação de juízos de avaliação (por exemplo, excelente, bom, satisfatório e deficiente).

Estas operações implicam um know-how muito especializado e por isso os inspectores avaliadores devem constituir um corpo profissionalizado, com formação avançada específica e um estatuto profissional próprio.

O programa de “Avaliação integrada das escolas”, desenvolvido pela Inspecção-Geral da Educação a partir de 1999-2000 e cujo primeiro relatório nacional foi publicado em 2001, constitui um exemplo dos dispositivos de avaliação experimentados e aplicados pelos serviços inspectivos europeus nos últimos anos (Portugal, Inspecção-Geral da Educação, 2001).

A análise das tendências recentes da avaliação inspectiva, nomeadamente no Reino Unido, tem sugerido que o processo inspectivo posto em prática ao longo dos anos 90 implica um dispositivo muito pesado, perturbador do quotidiano escolar e excessivamente dispendioso. Surge assim, como alternativa, a proposta de

A AVALIAÇÃO DO SERVIÇO PÚBLICO DE EDUCAÇÃO: DIREITO DO CIDADÃO E DEVER DO ESTADO

desenvolvimento da avaliação interna previamente certificada quanto ao respectivo dispositivo, sendo a avaliação externa entendida como uma intervenção mais ligeira, numa lógica de “avaliação da avaliação interna” (Ferguson, N. et al., 2000).

A execução da avaliação é uma questão técnica, mas a produção de informação sobre a qualidade é uma questão política: os cidadãos têm o direito de conhecer os juízos de avaliação formulados, e de ter garantias quanto à qualidade técnica e à idoneidade com que são formulados. Assim, a Inspecção-Geral da Educação, ou a qualquer que seja a agência pública que venha a responsabilizar-se pela avaliação externa, devem ser garantidas condições de autonomia que assegurem a credibilidade dos juízos formulados, com um corpo próprio de inspectores profissionais, e com o dever de reportar publicamente e para os órgãos de soberania que representam os cidadãos.

EM SÍNTESE

A preocupação com a qualidade e a avaliação corresponde a novos contextos sociais e políticos, insere-se num processo de reestruturação do Estado e responde a estratégias das classes médias dominantes na definição das políticas públicas.

Os dispositivos técnicos da avaliação do desempenho fundamenta-se na investigação sobre a eficácia das escolas e são apurados num contexto de cooperação internacional entre serviços de inspecção da educação.

A execução da avaliação externa das escolas constitui um campo de know-how especializado, exigindo um corpo profissional com formação avançada e estatuto próprio.

Os resultados da avaliação externa devem ser públicos, organizados com rigor profissional, mas acessíveis à efectiva compreensão dos cidadãos em geral.

A Inspecção-Geral da Educação, ou qualquer outra entidade criada para o efeito deve assumir a forma de um instituto público, com autonomia, um corpo próprio de profissionais e o dever de reportar publicamente.

ENSINOS BÁSICO E SECUNDÁRIO: A PERSPECTIVA INSTITUCIONAL

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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A QUALIDADE EM EDUCAÇÃO:

UM CONCEITO NECESSÁRIO À MUDANÇA

IDÁLIA SÁ-CHAVES*

1.MUDANÇA E QUALIDADE: PRESSUPOSTOS

A análise dos fenómenos de mudança pressupõe que se procurem determinar com antecedência qual o objecto/sujeito passível de mudança, qual o diagnóstico à partida e quais as metas e finalidades que, com essa mesma mudança, se pretendem atingir. Ou seja, e fazendo uma outra (possível) leitura do título, estar-se atento à qualidade da própria mudança para que ela possa vir a traduzir-se em efectiva qualidade da Educação.

Tais pressupostos tornam-se ainda mais pertinentes se os objectivos explícitos ou implícitos à intenção de mudar tiverem subjacente uma ideia de melhoria da qualidade relativamente às condições iniciais diagnosticadas.

Nesse caso, e independentemente do objecto relativamente ao qual o processo de mudança está a ser pensado, trata-se de formular juízos de valor quer relativamente ao ponto de partida, quer relativamente ao que se entende por melhor e que se estabelece como meta.

Desse modo, entra-se definitivamente no campo da subjectividade que toda a interpretação pessoal constitui e na radical (e feliz) consequência da impossibilidade de um discurso uniforme e totalizador, que pudesse assumir-se como a verdade da qualidade e, consequentemente, como a anulação da voz própria de cada indivíduo, sociedade ou cultura, enquanto factor estruturante e mobilizador de uma identidade específica.

Porém, nesse mesmo processo, entra-se também no campo da divergência e, não obstante as dificuldades processuais que comporta, esse facto constitui desde logo

* Universidade de Aveiro

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um primeiro indicador de qualidade, quer pelo efeito fecundante de umas perspectivas sobre outras, quer pela oportunidade de cada interlocutor se poder posicionar e reflectir por referência a quadros de pensamento necessariamente mais amplos e diversos.

Tal diversidade, como representação das singularidades, pode, se devidamente reconhecida e negociada, constituir-se como elemento fulcral na estruturação de um pensamento comum mais aberto e mais flexível a outras hipóteses de trabalho e de reflexão e, por conseguinte, mais capaz de responder de forma mais ajustada e coerente à complexidade que os problemas, enquanto fenómenos sociais, pressupõem.

É essa a justificação da mais-valia que todos os contributos reflexivos representam, quando o seu objectivo é procurar mudar para melhor.

No caso presente o objecto que nos aparece como sujeito passível de mudança é a Educação e, nela, o esforço de identificação dos indicadores de qualidade que se julgam poder vir a melhorar quer a sua conceptualização nas e para as sociedades e culturas actuais, quer as estratégias de acção transformadora, que novas (re)conceptualizações possam admitir e propor.

Por isso, torna-se também fundamental equacionar as problemáticas educacionais como corpo conceptual de um sistema altamente complexo dada a mútua implicação que pressupõe, de subsistemas sociais múltiplos, dinâmicos e recursivamente interactivos, protagonizados por sujeitos colectivos, frequentemente divergentes nas suas pré-concepções e visões do mundo, e desenvolvidas em contextos de acção, física e culturalmente diferenciados.

Ou seja, admitir um pressuposto de complexidade cuja compreensibilidade não pode prescindir de abordagens de tipo sistémico capazes de, para além da caracterização específica e singular de cada subsistema considerado, poderem propiciar e estimular a compreensão das relações de contiguidade, de conexão e de interface que se estabelecem na sua interactividade e condição de mudança permanente.

Isto é, possibilitar a visão concomitantemente distanciada para a contemplação do objecto na sua máxima abrangência e a visão próxima e, quase íntima, de cada elemento seu constitutivo e dos espaços inter-relacionais que lhe configuram a arquitectura conceptual e os sentidos pessoal e socialmente desejáveis.

A QUALIDADE EM EDUCAÇÃO: UM CONCEITO NECESSÁRIO À MUDANÇA

Como parece evidente, tal princípio não é apenas próprio do sistema educativo na sua dimensão intra-sistémica, isto é, relativa ao conhecimento das interacções que ocorrem no seu interior.

Nas ciências sociais e humanas os sistemas que se julgam poder responder e regular os processos de desenvolvimento pessoal, individual e social, como é o caso dos sistemas educativos, não podem ser objecto de abordagens que, ainda que complexas, se apresentem estanques relativamente a outros tipos de sistema (autarquias, associações de utilidade pública, família, congregações religiosas, comunicação social, etc.) com objectivos de promoção social, mas com um tipo de configuração diferenciada em virtude dos seus objectivos mais específicos e direccionados para outras dimensões daquele mesmo processo de desenvolvimento. Desse modo, um segundo pressuposto de qualidade poderá ser, quanto a nós, um esforço de descentração sobre as questões educativas em si mesmas que possa contemplar, através de uma visão mais distanciada, mais abrangente e com alguma exterioridade, a sua relação concreta com a sociedade e com os indivíduos de quem, supostamente, devem constituir factor de promoção, progresso, qualificação e desenvolvimento.

Só assim a Educação e nós, profissionais especialmente preparados para essa função, poderemos aquilatar e elaborar alguma ideia que, simultaneamente nos ultrapasse para além das nossas próprias inquietações e problemas de organização, condições, recursos e gestão de todas as diversidades, e nos comprometa com as consequências a curto, médio e longo prazos da nossa visão, quando circunscrita e pouco questionante ou quando reflexiva e crítica acerca dos fundamentos e valores que informam as nossas convicções e as nossas práticas.

2. EDUCAÇÃO:

NÍVEIS DIFERENCIADOS DE INCIDÊNCIA DA MUDANÇA

2.1. A MUDANÇA DESEJÁVEL?

Na linha de pensamento anterior, é intenção fulcral desta reflexão questionar a eficácia dos pressupostos de melhoria da qualidade educacional a diferentes níveis de análise já que, reconhecendo embora a importância de todos eles, também se reconhece a sua importância relativa e sobretudo a sua interdependência.

Ou seja, crê-se por exemplo que a elaboração de projectos, estratégias e planos de acção educativa, a definição da natureza das decisões curriculares a todos os níveis do sistema educativo, nomeadamente quanto à selecção de conteúdos prioritários

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ou de discussão em torno das questões didácticas de possíveis (trans)posições de saberes ou, ainda, a caracterização dos problemas decorrentes da gestão mais ou menos conflitual de todas estas vertentes, se encontra fortemente dependente das intenções, dos objectivos e das percepções dos professores acerca do que entendem como finalidades últimas da própria acção educativa.

Por isso, surge como reflexão prioritária, a necessidade de questionar não apenas os pressupostos de desenvolvimento individual e social de acordo com os valores expressos como fundadores de uma cidadania participada, responsável e emancipatória, mas sobretudo questionar as formas como estão a ser traduzidos em acção educativa eficiente ou se, pelo contrário, eles não vão além de uma retórica impressiva mas ingénua, que não encontra expressão nem nos processos nem nos resultados educacionais.

Como parece óbvio, trata-se de uma questão conceptual fundadora do próprio sistema educativo que encontra eco nos dispositivos constitucionais de cada país, mas que, num possível ponto da situação para o nosso, se encontra completamente secundarizada e enviesada em direcção a outras perspectivas que, durante todo o século XX, enraizaram culturas de seguidismo acrítico, de pulverização e de estilhaçamento do conhecimento, com todas as suas implicações na (im)possibilidade de compreensão integrada dos fenómenos humanos, e que instauram filosofias de vida marcadamente egoístas nas quais transparece um individualismo exacerbado, capaz de saltar por cima de todos os constrangimentos de natureza social e ética.

As sociedades deparam-se hoje com problemas decorrentes desta inversão ou, pelo menos, desvio das finalidades educativas fundamentais ao desenvolvimento humano, que trazem ao quotidiano de todos, sinais de desmembramento nas relações que supostamente seriam de aceitação mútua, de solidariedade, de justiça e de coesão para se confrontarem com situações cada vez mais frequentes, mais próximas e mais brutais de incomunicabilidade entre pessoas, entre gerações, entre culturas, entre povos e entre civilizações.

Poder-se-á perguntar o que tem a educação, as escolas, as famílias, os professores, os pais, os meios de comunicação social e os próprios alunos, a ver com isso.

A resposta será sempre: tudo. Têm tudo a ver com isso, ou seja, com a capacidade (ou não) de repensar os normativos, as orientações, os pressupostos de reorganização curricular (quer na sua dimensão instituída quer instituinte) como instrumentos coerentes com outras concepções e com outras filosofias de formação

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capazes de aproveitar o melhor do conhecimento científico e tecnológico, para abrir novas visões quanto ao seu uso social e quanto à qualidade de vida e de realização pessoal e profissional de cada cidadão, enquanto sujeito cuja dignidade se deva encontrar efectiva e intrinsecamente assegurada.

A todos os níveis de decisão curricular, desde o nível macro-político até às decisões pessoais de cada professor (ou de cada qualquer outro educador), esta questão perpassará os problemas mais concretos da acção educativa formal, não formal ou informal e de todas elas, e das suas consequências, dependerão os processos de acção e de comunicação que hão-de (ou não) possibilitar a esperança de que a Educação afinal se cumpra para além da retórica dos discursos e das boas intenções. A construção deliberada dessa congruência, a determinação colectiva de um sentido no qual os interlocutores possam reconhecer-se e a participação e empenhamento pessoais na construção dos caminhos possíveis e desejáveis para cada situação e momento à luz dos valores do humano parecem constituir outro indicador de qualidade fortemente compulsor de mudança nos processos intra-educacionais e nos resultados sociais que, deles, se esperam.

Por isso, as ideias de diálogo, de concertação estratégica, de cooperação, de trabalho em rede, de cruzamento e de partilha, atravessam, como poderosos significantes, os universos discursivos que reflectem o contraponto às correntes dominantes no mundo actual.

O possível redireccionamento da mudança dos quadros referenciais quanto aos valores, princípios e metas que se supõem caminhar no sentido antropológico de revalorização da pessoa, adivinha-se como uma quase utopia, impossível de ser pensada apenas a partir de dentro do próprio sistema educativo. A não ser possível esta consciencialização e a construção deliberada deste propósito, a alternativa poderá, entretanto, ter de vir a ser forçada e súbita em função de factores sociais externos nos quais as marcas de violência, de intolerância e de exclusão sejam apenas a face visível das incoerências com que, desde já, todos os dias nos confrontamos e que, obviamente, não estamos a conseguir enfrentar atempadamente na sua génese e multideterminação.

Espera-se, entretanto, que os sinais indicadores de desassossego, mais do que os resultados académicos, ou pelo menos tanto quanto eles, possam estimular uma reflexão e uma capacidade de intervenção mais decisiva nos índices de qualidade, pela sua natureza meta, inter e (trans)analítica e, sobretudo, pela capacidade de afrontar os pressupostos de uma sociedade marcada pelo mais desregrado mercantilismo de ideias, valores, pessoas e mercadorias.

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2.2. A MUDANÇA POSSÍVEL?

Se porém, tal consciência tardar em chegar, deveremos então continuar a lutar no interior dos nossos próprios sistemas de trabalho e de vida, pela transformação contextualizada e progressiva dos espaços de acção, nos quais possam, ainda assim e na sua limitação, emergir indicadores de qualidade, que apontem no sentido dos valores que legitimem, na nossa condição de educadores, a intromissão na vida de outros, como indutores e promotores das ideias de bem, tanto quanto responsáveis pelas suas múltiplas e indispensáveis literacias.

Dito de outro modo, procuremos dar continuidade aos processos de mudança que, há menos de três décadas, atravessam todo o nosso tecido social, procurando (re)instaurar um lugar de pertença, uma cultura e uma identidade reconhecíveis como próprias, mas, reconhecíveis também, no concerto de um mundo e de uma humanidade que, obstinadamente, a si mesmos se procuram.

E, tome-se como referente de qualidade, essa mesma relação de pertença a um mundo maior, mais plural, mais global e, paradoxalmente mais próximo, para sobre ela instituirmos formas particulares de acção educativa ajustada a contextos e níveis de desenvolvimento específicos, mas coerentes com os princípios reguladores de uma globalização da justiça e da solidariedade como património imaterial da humanidade.

Tal como entre nós, preocupações semelhantes e múltiplas referências a esta necessidade de mudança ocorrem por todos os países, nos quais a emergência de problemas decorrentes das perspectivas que caracterizam esta pós-modernidade também se faz sentir com premência. Pela sua importância e pertinência, salientamse algumas das linhas de pensamento que nos parecem de particular importância para potenciar os níveis de qualidade da mudança nos diferentes níveis do sistema educativo, enquanto alicerce de uma cultura de qualidade, que insistentemente se persegue de forma mais ou menos abrangente.

2.2.1. CULTURA DE QUALIDADE: DA ACÇÃO SINGULAR À ACÇÃO PLURAL

A complexidade inerente aos fenómenos sociais e, especialmente, no que se refere às possibilidades da Educação em todas as suas modalidades e níveis, confere aos problemas educacionais uma multideterminação à qual apenas sistemas conceptuais, organizacionais, metodológicos e funcionais também complexos conseguem responder com alguma eficiência.

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Nesse sentido, o aprofundamento da reflexão colectiva, as estratégias de reagrupamento, bem como o estabelecimento de parcerias com outros sistemas sociais de vocação para o desenvolvimento coerente devem ser estimulados e sustentados sem perda de autonomia para as decisões que os profissionais envolvidos tiverem como prioritárias.

Os indicadores de qualidade poderão, então, passar pela ultrapassagem das perspectivas de centração individualista e pelo reconhecimento do Outro como mais-valia na construção de colectivos mais coerentemente responsáveis pelos destinos de cada um dos seus elementos e, nessa medida, de si mesmos.

2.2.2. CULTURA DE QUALIDADE: DA CULTURA À INTERCULTURA

Os fenómenos de assimetria no desenvolvimento dos povos e os desequilíbrios na acessibilidade aos bens materiais e imateriais necessários a esse mesmo desenvolvimento têm como consequência visível a intensificação da mobilidade e as consequentes variações demográficas e culturais.

Por outro lado, questões como a diminuição dos índices de natalidade e o aumento de esperança de vida nos países desenvolvidos, por confronto com indicadores de sentido contrário nos países não desenvolvidos ou em vias de desenvolvimento, configuram realidades novas para os sistemas educativos, quer em termos de destinatários, quer em termos de reorganização das concepções e dos recursos disponíveis para fazer-lhes face.

Também as oscilações que, por todo o lado, se verificam nos mercados de trabalho e as suas consequências em termos de empregabilidade e (des/in)capacitação para novas oportunidades de emprego colocam novas questões aos sistemas educacionais formais e informais, desafiando-os à configuração e invenção de novas e mais ousadas respostas e sugestões de aprendizagem e de formação.

Os indicadores de qualidade poderão, então, passar pela clara identificação dos novos públicos educacionais, das suas culturas, valores e necessidades e por uma maior e mais diversificada oferta educacional que se traduza em, também novas, formas de reorganização curricular que possam enquadrar aquelas matrizes diferenciadoras numa perspectiva de cada vez maior inclusão sem perda de identidade.

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2.2.3. CULTURA DE QUALIDADE: DA ACÇÃO TUTELADA À ACÇÃO EMANCIPADA

Vive-se o tempo magnífico, mas ambíguo, da outorga de mais autonomia e, consequentemente, de mais poder às escolas, aos professores, aos pais, às comunidades e aos alunos.

Sinais de incomodidade pressentem-se na dificuldade que escolas, professores e demais actores assumem no desempenho de novas funções e de outros papéis, também eles mais activos, mais participativos e, como tal, menos previsíveis e mais responsabilizantes.

Melhorar a qualidade nesse processo de verdadeira transição ecológica poderá passar por níveis macropolíticos de efectiva coordenação e sustentação da mudança através de renovadas e mais coerentes propostas de formação inicial, pós-graduada e em contexto de trabalho, potenciando e comprometendo nos processos os próprios destinatários, os recursos dos Centros de Formação, das Instituições de Formação, das Associações e das Sociedades científicas e/ou de quaisquer outros actores sociais dispostos à construção partilhada de novas possibilidades e de outros futuros.

Obviamente, apresentando propostas de formação que possam desenvolver-se no sentido da mudança efectiva e que não permitam soluções de oferta errática e, por vezes, procuradas com fins algo duvidosos, como sejam a mera promoção na carreira e sem que lhes corresponda qualquer motivação intrínseca para a mudança e para o desenvolvimento em nenhuma das suas vertentes e dimensões.

Trata-se, de novo, de convocar a ética para a regulação da qualidade e sem a qual a oferta e a procura de formação não passará de mera retórica sem outro tipo de consequências que não sejam um profundo e generalizado desalento.

Penoso será que as margens de participação abertas a cada interlocutor nos processos educacionais possam vir a tornar-se ineficazes e inoperantes por incapacidade para agir em espaços de maior liberdade e, fazendo da autonomia conseguida um uso indevido.

Por isso, qualidade será também, e sobretudo, a consciência dos significados e das consequências das nossas hesitações pessoais e colectivas, seja qual for o nível ao qual se processe a nossa intervenção nos sistemas formativos.

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2.2.4. CULTURA DE QUALIDADE: DA ÊNFASE NO DISCURSO À ÊNFASE NA ACÇÃO

De uma perspectiva curricular centrada sobre os saberes disciplinares e alicerçada em teorias de ensino e de aprendizagem marcadamente teorizantes, fragmentadas e indutoras de um discurso sobre o conhecimento, emergem sinais de novas formulações e de novas reconfigurações epistemológicas que embora timidamente, sugerem a passagem desse tipo de conhecimento para o conhecimento em acção, entendido como experienciação dos saberes em actos reais e consequentes de vida e de trabalho.

Não obstante, as dificuldades conceptuais e de gestão curricular que tal perspectiva pressupõe e também dos múltiplos constrangimentos com os quais ela se confronta nos espaços educacionais, parece tratar-se de um, ainda temeroso, mas inequívoco salto nos índices de qualidade.

Com efeito, tanto quanto a preocupação com os fins últimos do acto educativo, a escola, a família, os professores e a comunidade de empregadores devem avaliar com rigor as consequências de uma formação que não prepare para a vida e para o trabalho como condição inalienável de emancipação e de realização pessoal de futuros profissionais.

É aqui que ao falar-se de conhecimento e de competência, se está concomitantemente a falar da possibilidade da dignidade pessoal.

Indicadores de qualidade poderão, então, encontrar-se na eficiência do desenho do próprio sistema educativo e na complementaridade e recursividade dos sistemas vocacionais, profissionalizantes e de apoio específico a populações diferenciadas.

Os sistemas, sejam quais forem as suas especificidades, devem acentuar a tónica da competência para agir responsavelmente e prever as parcerias de formação em interacção com outras instâncias públicas e/ou privadas, com vista à obtenção de mais elevados índices de desempenho e de empregabilidade. De igual modo, devem assegurar a mobilidade entre os diferentes sistemas e valorizar as aprendizagens realizadas em contextos informais, enquanto alternativas válidas de formação.

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2.2.5. CULTURA DE QUALIDADE: DO CONHECIMENTO TEÓRICO AO CONHECIMENTO PRÁTICO PESSOAL.

As questões da qualidade são também questões de tempo. Por isso, qualidade será, também, perceber quando, como e porquê convicções, perspectivas e crenças tidas como certas, vacilam, abrindo novos espaços de compreensão e novas hipóteses de desenvolvimento. São movimentos lentos e fortemente contrariados em virtude do seu poder para desinstalar e/ou desequilibrar estruturas consolidadas e vigentes. Um possível indicador de qualidade será, então, o esforço de criação de culturas de abertura à hipótese de mudança e climas organizacionais favoráveis à discussão crítica, à partilha de ideias, à investigação sobre a acção própria (ou de outros), que possam facilitar a emergência de um pensamento próprio (individual ou colectivo), referenciado quer à reflexão contextualizada, quer aos saberes de outros que, em outras instâncias de pensamento e acção possam também construir conhecimento e fazer dele objecto de partilha.

A qualidade poderá, então, passar também pelo reconhecimento dos profissionais, como co-produtores de conhecimento e não apenas como meros e dependentes aplicadores e reprodutores de conhecimentos de outros.

A identidade profissional individual e colectiva, enquanto constructo dinâmico e em desenvolvimento continuado, poderá assim apresentar-se não apenas como outro indicador de qualidade, mas, sobretudo constituir o seu garante no tempo.

2.2.6. CULTURA DE QUALIDADE: DA EPISTEMOLOGIA DISCIPLINAR À EPISTEMOLOGIA (TRANS)DISCIPLINAR.

São já hoje bastante evidentes as limitações da organização dos conteúdos científicos por disciplinas, aparente e artificialmente, estanques. Durante cerca de duas décadas o esforço da compreensão interdisciplinar procurou responder a uma maior aproximação à complexidade dos fenómenos, tal como se apresentam na realidade e não como se representam nas suas formas simplificadas e redutoras dessa mesma complexidade.

Com maior ou menor sucesso, nos ensaios de novas estratégias, só muito recentemente se desenham hipóteses de trabalho pedagógico de natureza transversal e que reconhecem nessa formatação a importância e a natureza, também ela transversal, do desenvolvimento de competências que ultrapassam a lógica disciplinar e persistem como questões constantes e pertinentes ao desenvolvimento social e humano.

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Indicadores de qualidade serão todas as formas de incentivo ao desenvolvimento de competências de cidadania com reconhecimento dos valores que lhes estão subjacentes sobretudo na defesa e preservação dos diferentes tipos de património e de cultura, no respeito pelo Outro e na participação solidária na construção de um tecido social mais humano, porque mais justo e mais digno e independentemente da área disciplinar na qual tal desenvolvimento é suposto acontecer.

2.2.7. CULTURA DE QUALIDADE: DA TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO À CIÊNCIA DA COMUNICAÇÃO

Vive-se intensamente nas sociedades desenvolvidas o impacto e a facilitação do acesso à informação. Todavia, tal facto não significa por si mesmo um cabal indicador de qualidade.

As assimetrias às quais já se fez referência persistem em deixar de fora milhões de pessoas, mesmo no interior dessas mesmas sociedades.

É, como lhe chamámos recentemente, uma profunda ferida ética cujo impacto e cujas repercussões nenhuma análise prospectiva consegue ainda antecipar.

Indicador de qualidade seria, então, o colmatar dessas assimetrias através de uma cultura educacional que pudesse rever as suas finalidades e chegar aos que mais precisam através das literacias básicas, enquanto condições e competências fundamentais aos processos de desenvolvimento.

Só assim se tornaria visível a passagem de uma cultura tecnológica de informação a uma cultura na qual a comunicação fosse possível e, através dela, o acesso à aprendizagem, à mudança e à dignidade.

2.2.8. CULTURA DE QUALIDADE: DA AVALIAÇÃO CLASSIFICATIVA À AVALIAÇÃO COMPREENSIVA

Vive-se um clima de reconhecida mudança. Os seus sinais surgem em catadupa, por vezes sem tempo para poderem ser percebidos nas suas implicações e, como tal, desde logo socialmente rejeitados porque mal explicados, insuficientemente justificados e, frequentemente, mal compreendidos.

Porém, e apesar de tudo, estamos atrasados, e sente-se que não há tempo a perder. As limitações conceptuais e a insuficiência das análises avaliativas está patente. Uma análise de resultados precisa sempre, para se tornar instrumento de qualidade, da

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correspondente análise de processos e da compreensão das culturas e dos climas de trabalho que facilitam e estimulam níveis de desempenho supostamente mais elevados.

Apenas uma intervenção ao nível daquelas variáveis poderá garantir e sustentar outros resultados que não aqueles com os quais nos confrontamos com demasiada frequência. E, ainda assim, nada pode garantir que os percebidos como piores sejam realmente os piores ou que os percebidos como melhores realmente o sejam.

Um indicador de qualidade seria, então, aprofundar os sistemas de avaliação, quer no seu desenho quer nos métodos de análise crítica dos resultados como instrumento fundamental na regulação dos processos e dos percursos de aprendizagem e de formação. E, se possível, ampliar o seu espectro de captura explicativa para evitar leituras e conclusões injustas e frequentemente abusivas.

Nesta linha, parece importante que se possa avaliar e reflectir de forma coerente mas contextualizada, procurando corresponder com rigor ao espaço (des)regulado da comunicação social pelo seu inequívoco poder na construção das imagens públicas da mudança.

BIBLIOGRAFIA

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Comentários

SÉRGIO GRÁCIO*

Vou fazer um comentário à volta de dois pontos que, embora não tivessem sido bastante desenvolvidos até agora, penso que não deixaram de ser referidos e, de qualquer maneira, parece-me que estiveram sempre muito subjacentes nas intervenções e mesmo subjacentes à própria temática deste Colóquio. São dois pontos que à partida não parecem estar estreitamente interligados, mas que gostaria de ver precisamente interligados, e que vou comentar, fazendo referência às intervenções que tiveram lugar.

O primeiro ponto a referir é aquele que se poderia designar pela vertente cognitiva da qualidade das aprendizagens escolares. O segundo é sobre a investigação educacional.

O primeiro ponto não esteve muito presente, a não ser, por exemplo, na última colega que interveio, mas a investigação educacional esteve talvez mais presente nas intervenções. Penso, por exemplo, naquilo que disse mesmo há pouco o professor Natércio Afonso acerca da crise do positivismo nas ciências sociais. Interpreto a sua afirmação da melhor maneira, creio que era essa com certeza a que estava no seu espírito: a de uma crise que não põe em causa o conjunto das realizações das ciências sociais e que constitui até uma das condições da sua vitalidade e da sua credibilidade. Creio que devíamos ter cada vez mais presentes os resultados da investigação educacional, quando debatemos temas de educação, e, em especial, quando debatemos temas como o da qualidade da educação.

A qualidade da educação implica, entre outras coisas, a qualidade das aprendizagens cognitivas realizadas na escola. Se me proponho focar este ponto não é porque tenho uma qualquer visão redutora da educação que ninguém aliás aqui certamente partilha, mas porque se trata de algo que pertence inegavelmente à missão específica da escola, por um lado, e, por outro lado, porque corresponde a um aspecto que, a meu ver, se tornou estratégico em termos da concepção do desenvolvimento do nosso sistema educativo.

De facto, há alguma coisa a fazer, estamos num tempo que convida a fazer qualquer coisa nesta matéria. O Professor Natércio Afonso falou do desenvolvimento do nosso sistema educativo nos últimos tempos, e nos factores que têm influído nesse desenvolvimento, e caracterizou muito a situação actual a partir daí. De facto, a

*FEPASC – Federação Portuguesa das Associações e Sociedades Científicas

situação actual é, sob um ponto de vista, caracterizada por um certo patamar quantitativo no desenvolvimento do sistema, não tanto por haver uma regressão da procura de educação, mas mais por razões de regressão do volume das classes etárias dos jovens que frequentam o sistema. Trata-se de um dos elementos do contexto que convidam à reflexão sobre a qualidade. Daí, aliás, a grande oportunidade desta iniciativa do Conselho Nacional de Educação. Todos temos um pouco o sentimento de que, após um período do crescimento muito acentuado do sistema educativo, por vezes explosivo, com o abrandamento desse crescimento, é tempo de nos ocuparmos de questões de qualidade. É essa certamente uma das razões da nossa presença aqui.

Mas como dizia, penso que há, de facto, algo a fazer. Consideremos, por exemplo, o caso do nosso ensino básico. Estou a pegar no primeiro ponto: a qualidade das aprendizagens escolares vistas do ponto de vista cognitivo. No ensino básico, aproximadamente metade dos alunos que o terminam fazem-no sem terem completado todas as disciplinas. Metade apenas dos que obtêm o correspondente diploma é que completaram todas as disciplinas. Estou a considerar dados do próprio Ministério da Educação, mais concretamente referidos num recente relatório da Inspecção-Geral da Educação. Portanto, só metade daqueles que obtêm o diploma do terceiro ciclo do básico o fizeram tendo tido aproveitamento integral.

Podíamos também apreciar a situação de outra maneira, olhando agora para os alunos que prosseguem estudos após terem completado o secundário. Um aluno que prossiga estudos para além do secundário, e dados os parâmetros institucionais do nosso sistema educativo, pode perfeitamente ingressar num curso de uma determinada área especializada, tendo tido um aproveitamento extremamente fraco nas matérias e nas disciplinas correspondentes a essa área, enquanto frequentou o secundário.

Por exemplo, é possível, com o sistema tal como funciona actualmente, que um aluno ingressado num curso de engenharia não saiba calcular uma percentagem, é perfeitamente possível isto acontecer. Vão-me dizer que é uma afirmação de tipo formal, que isso só é possível formalmente. Mas haveria, de facto, alguns casos limite próximos deste caso hipotético. Vou referir um exemplo: a pessoa que me antecedeu na representação da FEPASC (a Federação das Associações Científicas) no Conselho Nacional de Educação, o Professor Vítor Lobo, disse-me uma vez que lhe tinha contado um colega que dois alunos do 1.º ano de engenharia, na Universidade de Coimbra, tinham ido ter com ele, com um problema, uma dúvida: não tinham a certeza se X mais X era dois X, ou então X ao quadrado. O carácter digamos pitoresco do caso não deve, é claro, impedir de ver que o importante aqui é que:

estes alunos eram parte de um conjunto de ingressados no ensino de engenharia;

z é pouco provável que a dúvida que manifestaram traduza um fenómeno discre

pante, isto é, que não constitua um indicador das competências em matemática

inserível numa curva que traduza as competências do conjunto;

z com outros parâmetros institucionais as características do conjunto nestas competências seriam outras.

O segundo ponto, em breves incursões, para sugerir como pode ser interessante o conhecimento em investigação educacional para potenciar as realizações das nossas escolas na vertente cognitiva. Por exemplo, James Coleman e os seus colaboradores desenvolveram, nos anos 80 do século passado, trabalhos sobre o aproveitamento escolar e o abandono escolar em diferentes tipos de escolas norte-americanas. Os resultados mostraram nomeadamente que nas escolas onde se estabeleciam laços duráveis entre as famílias dos alunos, onde havia um interconhecimento elevado entre elas, tinham lugar efeitos muito positivos no itinerário escolar dos alunos, sobretudo para evitar o abandono escolar, mas também no aproveitamento escolar. À volta destas escolas as coisas funcionavam um pouco em termos de uma comunidade adulta, onde era informalmente trocada informação sobre os jovens, onde eram discutidos os diferentes casos, onde se poderiam discutir normas, e até chegar a algum consenso sobre essas normas através dessas trocas espontâneas, o que tinha consequências muito positivas no investimento escolar e no itinerário escolar dos jovens. Quando estas comunidades adultas não existiam, ou existiam apenas em esboço, os resultados eram os contrários. Funcionavam portanto como apoio efectivo aos jovens. A metodologia do estudo foi bastante fiável, nomeadamente com o controlo de outros factores susceptíveis de influenciar, como várias características das famílias, etc.

O estudo foi levado a cabo na base do desenvolvimento, pelos autores, das noções de capital social e de capital humano. Este último tem a ver com um conjunto de características pessoais, que podem nomeadamente ser potenciadas em processos educativos; o capital social existe não nas pessoas mas nas relações entre elas. Pode portanto haver, num conjunto humano, capital humano, mas pouco capital social. Nas escolas em que havia forte interconhecimento das famílias os jovens estavam inseridos numa rede densa de relações entre adultos e beneficiavam desse capital social elevado.

Voltando ainda ao Professor Natércio Afonso, e sobre o efeito de escola, das escolas e da sua eficácia na promoção das aprendizagens, de que ele falou há pouco. Para complementar um pouco, talvez valesse a pena também referir o efeito professor, porque há a dinâmica da escola, da sua organização e actividades à liderança e ao empenho dos seus actores, etc., que a pesquisa mostrou ter considerável influência nos resultados dos alunos em provas padronizadas e centralmente corrigidas. Subsiste contudo um importante efeito que tem a ver com as características pessoais dos professores, a sua atitude perante os jovens e os seus métodos de ensino. Boa parte do que se passa na sala de aula e tem consequências nas aprendizagens depende dos professores individualmente considerados. Acontece que a pesquisa tem mostrado que este efeito professor é substancialmente mais elevado que o efeito escola, cerca de três vezes mais elevado. Note-se que estes resultados são obtidos por estudos que consideram simultaneamente os dois efeitos, além de outras variáveis pertinentes, sobre a família dos alunos, etc. Quando se refere o efeito professor tratase portanto de este efeito uma vez controlado o efeito escola, e vice-versa.

Para ilustrar a importância do efeito professor entre nós basta chamar a atenção para algo mais conhecido de todos. Refiro-me aos resultados dos exames em várias disciplinas do secundário, confrontados com as notas dadas pelas escolas, e a maneira como foram publicados em certa imprensa. No jornal “O Público”, via-se nitidamente que, dentro de uma mesma escola, havia forte diferenciação nas notas de exame entre as disciplinas, o que era dado pelo número de ordem em cada escola da nota de cada disciplina relativamente ao conjunto. Portanto, numa mesma escola, disciplinas diferentes, leccionadas é claro por professores diferentes, podiam dar em muitos casos uma classificação nos resultados de exame final com uma amplitude de variação que era extremamente elevada. Ora, como notavam os jornalistas com toda a pertinência, isso ocorria com um público escolar que no essencial era o mesmo. Tudo indicava, portanto, que se estava perante diferentes desempenhos dos professores.

Estes resultados são importantes, nomeadamente para evitar alguns equívocos que podem resultar da divulgação deste tipo de pesquisas. Quando se afirma, por exemplo, que “a escola” tem relativamente pouca influência nas aprendizagens se confrontada com a influência da família de origem dos alunos, isso é verdade se por “escola” entendermos o que está subjacente ao que designámos de efeito escola (a dinâmica educativa específica de cada escola entendida como organização, o que passa pelas lideranças, pelas iniciativas, etc.). Já não o é muito menos, e em contrapartida, se considerarmos o efeito professor – que pode ser tão importante como o da família. É obviamente essencial ter isto presente, sobretudo quando nos interrogamos sobre o que a escola pode fazer pelas aprendizagens dos que são culturalmente menos favorecidos (que são em geral como todos sabemos os economicamente e socialmente mais desfavorecidos).

Podemos ligar esta última questão com a da mobilidade social, que foi há pouco evocada. Podemos tentar traduzir em termos da linguagem da mobilidade social a afirmação de que a escola é socialmente reprodutora (embora esta tradução não seja por assim dizer literal, isto é, deixa de lado certos aspectos contidos na noção de reprodução social). Diríamos então que a escola é reprodutora porque funciona como um travão aos movimentos de mobilidade social intergeracional, sejam eles ascendentes ou descendentes. As oportunidades escolares não são independentes da origem social, a escola é portanto largamente responsável pelo facto de os destinos sociais não serem independentes da origem social, de haver muito menos mobilidade social do que aquela que seria possível.

Mas a ideia de escola reprodutora não deve levar a esquecer que a escola é também um canal de mobilidade social. Nas nossas sociedades a maior parte dos movimentos de mobilidade social têm lugar através da escola. A escola faculta muita coisa e, justamente, faculta-o em primeiro lugar àqueles que à partida têm menos recursos, recursos culturais, antes de tudo. Eu tratei em tempos dados sobre o nosso ensino básico, que ainda eram do tempo em que havia as duas fases no 1.º ciclo. Eram dados nacionais, sem amostra, recolhidos pelo Ministério da Educação. Ora, um dos resultados a que cheguei foi o seguinte: o efeito da classe social de origem das crianças no seu aproveitamento escolar era muitíssimo mais forte na 1.ª Fase do que na 2.ª Fase. Ou seja, a escola, pelas próprias oportunidades de aprendizagem que fornece, reduz as disparidades na capacidade de aprendizagem segundo a origem social.

Voltemos agora aos resultados do aproveitamento escolar no básico, e ao estado do crescimento do nosso sistema educativo. Estamos, por um lado, claramente num quadro de escolas de massas. Por outro lado, tendo presente esse mesmo quadro e as considerações anteriores, não hesito em afirmar que, de todos os modelos de sistema educativo que podemos plausivelmente conceber, aquele que temos é dos mais reprodutores, senão mesmo o mais reprodutor que possamos imaginar. E porquê? Porque a nossa escola é pouco exigente e, acima de tudo, é-o precisamente no troço do sistema em que devia ser mais facultadora, em que devia proporcionar aos mais desmunidos o melhor quadro possível para as aprendizagens, ou seja, no ensino básico. Convém não esquecer que os resultados do básico atrás referidos se situam num quadro de um sistema de avaliação que é ele próprio já de si pouco exigente. Ora, como todos sabemos, o básico, ao qual aliás por alguma razão foi dado esse nome, é fundamental no desenvolvimento dos jovens. Mesmo de um ponto de vista neurofisiológico é precisamente até à volta dos quinze anos que tem lugar o essencial do desenvolvimento cognitivo dos jovens.

Nesse sentido, e para retomar as noções que vimos atrás desenvolvidas por Coleman, podemos dizer que há sem dúvida capital humano no ensino básico. Ou seja: existem as crianças, os jovens e os professores, mas provavelmente não há capital social suficiente, instaurado e tecido nas relações educativas. Parece óbvio que uma escola assim, sendo relativamente pouco exigente, é uma escola particularmente reprodutora. Porque se a escola é, na sua definição institucional, pouco exigente também, e inevitavelmente, convida pouco a uma verdadeira mobilização dos seus actores. Num tal contexto, o que se destaca, o que vem ao de cima e corresponde à «variável» que se torna particularmente activa é a influência da família, não tenhamos grandes dúvidas sobre isso. Estamos assim hoje perante uma escola de massas que aparentemente muito faz para não penalizar os mais desmunidos, mas que é acentuadamente reprodutora, o que não deixa de ser extraordinariamente perverso. Portanto, o par democratização/elitização de que falou há pouco o Professor Valter Lemos, não é forçosamente contraditório, pode até, no terreno concreto das coisas, remeter para uma relação de perfeita complementaridade.

Pensemos no que poderão ser os percursos escolares padrão, modais, de crianças de meios socialmente contrastados, durante o básico, com ou sem ingresso no secundário, e após este, com ou sem prosseguimento de estudos. Atente-se nomeadamente na passagem do básico para o secundário, quando ela tem lugar, pondo lado a lado jovens daquelas proveniências diversas: o jovem de meio culturalmente favorecido não terá sido prejudicado por uma escola básica pouco desafiadora, na qual aliás teve, sem esforço especial, muito bom aproveitamento. O de meio desmunido não completou todas as disciplinas do básico, e sobretudo não tirou verdadeiramente partido em termos das suas capacitações daquelas que “fez”. Formalmente, ambos ingressaram no secundário. Não será contudo necessário insistir muito para perceber que o primeiro está infinitamente melhor armado para uma competição escolar que se agudiza brutalmente à entrada no secundário, charneira decisiva no estado actual do sistema, onde ganha recorte a diferenciação dos itinerário futuros, incluindo os de estudos prolongados.

Para finalizar, duas observações sobre o que entendo por uma escola mais exigente na vertente cognitiva, uma opção urgente no caso do nosso ensino básico, e de sentido estratégico tendo em conta o conjunto do sistema educativo, como procurei mostrar, ou sugerir.

Não se trata de modo algum de “sobrescolarizar” a existência das nossas crianças e jovens, o que seria obviamente nefasto de um ponto de vista educativo. Trata-se, sim, de definir um conjunto razoável e equilibrado de parâmetros para as aprendizagens, eventualmente até compatível com um aligeiramento quantitativo dos programas. E de ser, depois, verdadeiramente exigente na base do que foi definido, com regras do jogo bem conhecidas de todos. Acrescento, em segundo lugar, algo que poderá até parecer desnecessário para muitos, mas que não o julgo ser em absoluto, uma vez que subsiste a tendência para pensar em termos dicotómicos; no caso vertente para pensar que quem assume determinada posição em dada matéria terá necessariamente de ter tal e tal posição em matérias próximas. Um ensino mais exigente, ali onde se afigura mais necessário, nada tem a ver com um retorno à consagração de um ensino tradicional, como por vezes é sugerido no debate público sobre educação, e, de preferência, por aqueles que nos fornecem precisamente excelentes ilustrações de pensamento dicotómico. Só posso concebê-lo no quadro do esforço sempre continuado de promover nas relações educativas o duplo legado dos pedagogos e da pedagogia e do conhecimento dos resultados da investigação em educação.

VÍTOR SARMENTO*

Não sou professor e, portanto, nos tópicos que vou partilhar convosco, não tenho qualquer estatuto de técnico. Sou apenas um pai que há oito anos se interessou por isto, e hoje, enfim, nas funções que exerço no movimento associativo, tenho formado com os meus companheiros, algumas opiniões sobre estas matérias. E é nessa qualidade apenas, num outro olhar que naturalmente hoje a escola vai tendo cada vez mais, que eu procurarei partilhar convosco, em torno destas questões da qualidade. Tenho aprendido muito (como aprendo sempre no Conselho Nacional de Educação), matérias novas, sempre muito ricas. Terei de ir um pouco mais ao terreno, porque sentir-me-ei mais à vontade para partilhar convosco as minhas opiniões.

Para já, eu acho que nestas questões da qualidade não há apenas novos desafios, nem somente novas linguagens. Há, em meu entender, uma coisa que não foi dita, e que são novas exigências. Sinto isto na relação que tenho com aqueles que no fundo são os utentes da escola: os filhos e os pais. Houve um crescimento da consciência democrática dos cidadãos, que vão percebendo cada vez mais que os seus impostos têm que ter respostas de qualidade nas escolas. Ou seja, passar-se do patamar da quantidade para a qualidade. E, por isso, também os pais se têm vindo a associar a uma coisa que é relativamente nova, que são as Associações de Pais.

Nos tópicos que tive oportunidade de elaborar, refiro isso. Mas eu penso que esse patamar corresponde a um período da nossa história em que houve necessidade de abrir a escola a todos. Foi um passo muito positivo e muito importante. No entanto, ela cresceu de uma forma desmesurada, sem atentar nem procurar os padrões de qualidade, nem responder a pormenores pelos quais, em minha opinião, hoje estaremos a pagar essa falta de atenção. Reconheçamos, no entanto, que há hoje uma séria tentativa de dar a essa quantidade, a qualidade que merece e que acreditamos ser possível. As Associações de Pais também defendem essa qualidade.

Os olhares para as questões da qualidade são nivelados em vários patamares. Em primeiro lugar é preciso assumir que qualidade é de facto um dado subjectivo. O que é afinal a qualidade para quem determina as políticas no Ministério da Educação? E para aquele autarca que no seu concelho tem responsabilidades pelas escolas do 1.º ciclo? Nós sabemos que nos 308 concelhos, há seguramente, uma diversidade muito grande de opções políticas que falam em nome de diferentes níveis de qualidade. E

*Confederação Nacional das Associações de Pais (CONFAP)

depois o que é a qualidade na escola? O que é qualidade para o professor? O que é qualidade para o aluno? E para o pai do aluno? Portanto, estes diferentes olhares têm, seguramente, algumas contradições entre si.

Eu creio que, infelizmente, não tem sido suficientemente observada esta complementaridade nem a ousadia de se juntarem estes diferentes olhares – naturalmente todos eles legítimos – e procurar dar algumas respostas.

Também nas Associações de Pais fazemos muitos debates para tentarmos perceber este mundo da educação, porque a maioria de nós não somos professores.

Portanto, para discutirmos com os professores, naturalmente temos que estudar um pouco, partilhar entre nós opiniões, para depois, nos órgãos da escola, também sermos capazes de debater.

Porque senão, somos cilindrados pela condição técnica daqueles que estudaram muitos anos e hoje continuam a ensinar, e nós, como cidadãos que não temos essa arte (que também se adquire), temos que nos armar com conhecimentos. É claro que temos que observar a nossa história mais recente, decorreram já vinte e sete anos após a conquista do nosso estatuto da liberdade. Eu mesmo (considerando-me ainda jovem e com muita força para o futuro), fui estudante no período em que a escola era marcada por uma determinada regra fechada e repressiva. Recordo-me ainda que, quando a minha mãe ia à escola, tinha que bater à porta e pedir licença para entrar. Não podia dar uma opinião, porque até esta lhe era vedada. O estatuto de professor também permitia um conjunto de posições, apesar do não reconhecimento do seu estatuto profissional.

Esta aprendizagem, que na minha opinião, se tem vindo a desenvolver nestes anos, teve também alguns excessos, como qualquer processo mais complexo (como o nosso teve). Provavelmente ainda não conseguimos chegar ao ponto de equilíbrio. A questão é sabermos se temos a capacidade, e penso que estamos a caminhar nesse sentido, de encontrarmos o equilíbrio entre o excesso e a necessidade objectiva da Escola e do sistema de ensino.

A própria escola de massas é reflexo disso: abriu-se sem responder a questões que, como dizia há pouco, por vezes não são tidas em conta. Diz-se muitas vezes que a culpa é do sistema. Não sei se é. Mas é verdade que somos muitas vezes engolidos. Eu tenho ouvido professores que se lastimam. Que perderam perspectivas e deixaram de acreditar que é possível dar uma volta na situação. Todo aquele ânimo, aquele empenho, aquele carinho, aquela militância que davam na sua escola, perderam. Hoje, mercê desse desacreditar, deixaram de se empenhar activamente nas mudanças de que a escola (cada uma delas) internamente necessita. Portanto, nós que nascemos nesta escola autoritária, fechada, exclusiva, temos hoje necessidade, na minha opinião, de também ter em conta que ainda temos algumas remeniscências destas duas situações. E, por isso, agora na óptica de dirigente de uma Associação de Pais, encontramos por vezes, no discurso de avaliação e das perspectivas futuras, a ideia de que é preciso abrir a escola à família, abrir a escola aos pais. Tudo isto aparece muitas vezes bem descrito em projectos de intenções, que não passam disso mesmo.

Quer dizer, não sei se este exemplo, que há pouco referia de que os pais não iam à escola mas participavam de forma indirecta, pode ser avaliado de forma tão simplista. Nós temos que falar dos cidadãos que temos, dos portugueses que temos, dos pais que temos, mesmo sob o ponto de vista cultural, e naturalmente sob outros pontos de vista: como é que se desenvolvem os cidadãos? E o que é que isso implica na sua atenção às questões da vida social e política e também da educação?

E nós vemos isso nas reuniões que procuramos fazer com os pais. As dificuldades que temos.

As associações de pais têm um trabalho intenso. E frequentemente encontram barreiras.

É preciso também referir, nas questões de avaliação, que, por um lado, tem que ser avaliado o processo de abertura da escola à comunidade e, em particular, aos pais. E não é no papel. É ter em conta na definição das políticas dos projectos pedagógicos e do plano anual de actividades. Ver em concreto como é que essa escola se abriu e se abre para que os pais e as famílias, de facto, possam ter um papel activo, interveniente e regular na escola. E também na avaliação.

Afinal, quem é que faz a avaliação? A avaliação é feita apenas por docentes que têm naturalmente um olhar próprio sobre a escola.

Consideramos que em algumas áreas da avaliação, devia haver também outros olhares. E, portanto, aqui não sei se é com qualidade ou se é sem qualidade, mas que era preciso ter outros olhares na forma e nos conteúdos.

Já que estou a esgotar o tempo, vou passar à frente, mas gostava ainda de vos falar um pouco no 1.º ciclo.

A CONFAP decidiu neste ano lectivo, dirigir as atenções para o 1.º ciclo. Entendemos, por exemplo, que estarmos a fazer avaliações de 12.º sem ter em conta a realidade dos primeiros anos de escolaridade é estarmos potencialmente a inventar coisas. Ou seja, a situação existente no 1.º ciclo, em que continuamos a ter alunos que têm três, quatro, cinco e seis professores num só ano lectivo, não torna possível fazer avaliação séria ao fim dos quatro anos.

Temos alunos que tiveram treze professores ao fim de quatro anos de escolaridade. Em que o corpo docente fixo nessa escola é apenas de dois três professores, em doze/treze. Que critérios objectivos se pode ter numa avaliação do 1.º ciclo? E, consequentemente, enquanto não se resolver o problema do 1.º ciclo de uma forma rigorosa, e com meios, não se pode ir muito longe. Infelizmente ainda não vai ser neste Orçamento de Estado que vamos ter esses meios para o 1.º ciclo. Os números estão apontados, quer no plano de acção social escolar, quer noutras áreas, nomeadamente na recuperação dos imobiliários. Infelizmente, o Orçamento de Estado para 2002 não vai reflectir uma coisa que foi anunciada, que era dignificar o 1.º ciclo.

A componente humana é muito importante, mas nós sabemos que a componente dos meios para fazer coisas também é muito importante.

A avaliação do nosso sistema educativo no futuro deverá ter claramente em conta o 1.º ciclo e as suas condições objectivas e subjectivas, bem como a mobilização do corpo docente para recuperar a autoconfiança e para conseguir mais dedicação à escola. Porque aquilo que nós conhecemos é que, neste ensino básico, perdeu-se muita dedicação à escola. E enquanto não houver esse tipo de investimento no plano humano e no plano dos meios, podemos fazer rankings que, trabalhados como foram por alguns, de quem eu, pessoalmente, não tinha tido o prazer de ouvir falar sobre educação, no mínimo me indignaram. Pensei mesmo, como é que se teriam sentido alguns professores que, em situações dramáticas de comunidades concretas que nós temos, e conseguindo manter algum empenho e dedicação, não vêem reconhecidos nos números dos exames este trabalho. Acabámos por ver e ouvir nos ecrãs da TV uma senhora da SIC que rematava assim uma notícia acerca dos rankings: “Então agora vamos todos à Escola do Sagrado Coração de Maria buscar a receita para sermos todas boas Escolas”. Considero que isto não foi nem é avaliação séria que possa preparar o futuro.

ANA PENIM*

Em primeiro lugar queria cumprimentar todos e agradecer ao Conselho Nacional de Educação a grande confiança que em mim deposita, ao desafiar-me para proceder ao comentário da última intervenção de um dia tão rico e tão preenchido. Quando fui confrontada com esta situação, tentei perceber qual era a mais valia que podia de alguma forma trazer a este debate. Enquanto representante da Confederação do Comércio e Serviços de Portugal no CNE, optei por fazer a ponte entre as questões da Qualidade no mundo empresarial, no mundo do trabalho e no mundo da educação, da formação e da aprendizagem ao longo da vida.

No que diz respeito à intervenção do Senhor Professor Valter Lemos, gostaria de realçar a questão da “vertigem do novo”. O Senhor Professor referiu que a “vertigem do novo”, muitas vezes desestrutura o sistema educativo, desestrutura a nossa actividade. A “vertigem do novo”, que decorre da mudança acelerada e contínua, é efectivamente um grande desafio que todos temos pela frente, não só no mundo empresarial, mas também na sociedade em geral e na educação em particular. É uma situação com que todos temos que lidar. O mundo da educação, particularmente, tem de querer e de se convencer que tem que ser capaz de acompanhar a mudança, que tem que estar predisposto para correr, como naquela história do leão e da gazela: não interessa se eu sou leão, se sou gazela, só sei que todos os dias de manhã quando acordo tenho que correr e mais depressa que o meu adversário. Assim, em primeiro lugar, o mundo da educação tem que se mobilizar para a mudança, encontrando satisfação nessa mobilização. Tal como no mundo empresarial, a mudança é uma inevitabilidade.

Quanto à Qualidade, no mundo empresarial esta questão é já há muitos anos uma grande preocupação, porque ela determina em grande parte a competitividade e sobrevivência das empresas. A empresa que não se preocupa com a qualidade, seja dos seus produtos, seja do seu funcionamento, vai à falência. Não será exactamente assim na educação. Provavelmente deveria ser mais do que é. Isto remete-nos para uma outra questão muito importante e que já foi aqui falada várias vezes, nomeadamente pelo Professor Valter Lemos na sequência da problemática da mudança, que é a questão de se saber o que se considera ser a Qualidade. No mundo empresarial costuma-se dizer que “Qualidade é sermos capazes de responder às expectativas e às necessidades dos nossos clientes ao menor custo” (eu sei que frequentemente o mundo da educação acha que o mundo empresarial simplifica

*Confederação do Comércio e Serviços de Portugal (CCP)

excessivamente as coisas, tornando-se demasiado objectivo e que isso não se pode aplicar à educação). No entanto, já hoje aqui várias intervenções questionaram, quais são as expectativas, as necessidades ou as finalidades do sistema educativo, da política de educação, das escolas, etc.. Efectivamente, se queremos falar de Qualidade, temos que saber que objectivos queremos atingir e não falar apenas no abstracto.

Gostaria ainda de introduzir três dimensões que hoje não foram muito exploradas, mas que no contexto empresarial são: a “sobre qualidade”, a “sub-qualidade” e os “custos da não qualidade”. Trata-se de dimensões que coloco a debate e que com certeza poderão vir a ser exploradas em sessões posteriores.

Em várias abordagens foi também referido que muitas vezes não existe uma percepção comum acerca da qualidade, seja ao nível político, seja ao nível dos diferentes actores e autores das escolas. Em relação os pais, por exemplo, ou as empresas, como podemos desenvolver uma percepção comum da escola, e assim trabalharmos em função de objectivos comuns.

Podemos começar por nos questionarmos sobre que missão temos? Penso que é interessante trazer e tentar aproveitar para o contexto educativo algum tipo de conceitos e de linguagem do mundo empresarial. Será que, ao nível da nossa escola, já tivemos a preocupação de definir qual é a nossa Missão? Para quem trabalhamos e como trabalhamos? Já investimos tempo nessa reflexão, para além do tempo que afectamos a reuniões dos grupos disciplinares ou aos conselhos de turma? Como é que mobilizamos o corpo não docente?

Definidos os objectivos, devermo-nos-emos preocupar com a sua avaliação. Que resultados? Como avaliar? Quem os deve avaliar? Que consequências daí devem advir?

Como há pouco referi, as empresas com mau desempenho frequentemente vão à falência. E no caso das escolas, o que acontece? Escolas com níveis de desenvolvimento diferentes, actores diferentes, regiões diferentes, expectativas diferentes. É, efectivamente, um processo muito complexo, mas que não pode deixar de ser avaliado.

A questão da avaliação remete-nos também para a questão da escolha da escola e da possibilidade de se aceder a uma certa escola. Como é que se pode escolher uma escola? A possibilidade de escolher uma escola, assim como de escolher outras coisas na vida, conduziria, provavelmente a outros resultados na gestão da rede educativa. O sistema educativo é um sistema complexo. Quem é o seu cliente? podemos identificar os alunos como clientes? e os seus pais? e as empresas? e a sociedade em geral? Qual o produto que o sistema educativo produz? Quem são os seus fornecedores internos e externos?

Será que a escola tem, ou utiliza, a autonomia para trabalhar em função das expectativas dos seus clientes? Efectivamente, num sistema fortemente normativo (como é o caso do nosso sistema educativo) onde o cumprimento estrito de regras é um aspecto muito importante, a autonomia dos projectos educativos, que constitui a sua maior riqueza, sai em grande parte prejudicada. A este nível as escolas profissionais constituem um bom exemplo de exercício de autonomia pedagógica, administrativa e financeira. Como o Dr. Luís Presa referiu, muitas vezes são tomadas decisões que não podem estar à espera da autorização do Ministério da Educação, sob pena de perderem a sua pertinência e oportunidade.

Passar então de uma atitude concentrada no cumprimento de normativos para uma atitude de adaptação e de inovação permanentes, constitui um passo fundamental para a qualidade sustentada do sistema educativo. Qualquer organização, seja ela uma empresa, uma escola ou um hospital, que esteja verdadeiramente empenhada na prossecução das expectativas e dos objectivos dos seus clientes, tem que querer estar envolvida num processo de melhoria contínua, e não num processo de cumprimento de normativos. Utilizando uma linguagem de escola, num processo de qualidade e de melhoria contínua, a avaliação deixa de ser uma avaliação sumativa para passar a ser uma avaliação contínua e formativa, um processo de investigaçãoacção, onde se recolhem feedbacks e inputs para se poder ir mais além.

A Senhora Professora Idália Sá Chaves apresentou várias questões muito interessantes. Irei referir apenas a questão da “visão descentrada, negociada e partilhada”. Trata-se de uma questão fundamental que não está muito generalizada no nosso sistema educativo. A escola não está muito habituada a adoptar estas práticas, seja em termos de organização interna, seja ao nível do diálogo com o exterior ou da negociação com os próprios alunos no seu processo de aprendizagem. A negociação e a partilha, num sistema de qualidade e de melhoria contínua são questões estruturais, que, depois de consolidadas, dão substracto à certificação de qualidade conferida à organização.

Nas empresas, há vários anos que se iniciaram os processos de certificação da qualidade. O sistema universal de certificação da qualidade surgiu no contexto industrial tendo-se já alargado a muitos outros sectores, nomeadamente aos serviços e, nalguns países, à educação. Que tipo de certificação de qualidade se deve então adoptar no sistema educativo? Interessa-nos construir um sistema de certificação a nível nacional, a nível do subsistema em que nos inserimos, ou a nível do sistema universal de qualidade? O Instituto Português da Qualidade (IPQ), a Associação Portuguesa de Certificação (APCER), a Associação Nacional do Ensino Profissional (ANESPO), bem como várias outras instituições trabalharam já a adaptação das normas ISO à realidade da educação. Este é o primeiro passo para se poder enveredar pela aplicação do sistema universal de qualidade ao sector da educação.

No entanto, entrar num processo de Gestão da Qualidade Total é um desafio muito maior do que conseguir a Certificação de Qualidade para a Organização. Na realidade empresarial, quando a certificação de qualidade não se apoiou num processo consistente de Gestão da Qualidade Total, por vezes deu muito maus resultados. Essas empresas ficaram presas a determinados normativos e a manuais de procedimentos de qualidade, cuja operacionalização prática não aconteceu. Outras vezes, a certificação constituiu um verdadeiro obstáculo à inovação e à criatividade nessas empresas. Foram assim criados processos que tornaram essas Organizações muito mais burocráticas.

Hoje, o desafio que a este nível se coloca à educação em Portugal é o desafio que normalmente se coloca, por exemplo, aos países mais atrasados em vias de desenvolvimento: o desafio de conseguir não cometer erros já cometidos por países mais desenvolvidos.

Assim, o nosso sistema educativo tem de visar um sistema de Gestão da Qualidade Total e não apenas de Certificação de Qualidade. Tenho receio, confesso, que o próximo chavão na educação, venha a ser o da Certificação da Qualidade, e que depois fiquemos mais reféns do que beneficiários desse mesmo processo.

Um processo de Gestão da Qualidade Total facilitar-nos-á estarmos receptivos à “vertigem do novo”, numa atitude prospectiva e muito activa.