Moderador – Maria Odete Valente
Rosalia Vargas ∗
Escolhi como tema a ciência viva numa cultura de intervenção. E vou centrar muito a minha apresentação numa troca de experiências, daquilo que foi e é o trabalho do Ciência Viva, neste campo, nesta matéria da educação em ciência. De facto, com o concurso para projectos de ensino experimental das ciências nas escolas, que existiu, como estão recordados, de 1997 a 2001, assistiu-se, nesses cinco anos consecutivos, a um movimento muito direccionado para a comunidade educativa, em todos os níveis de ensino, desde o pré-escolar ao secundário, com uma ligação muito estreita com a comunidade científica e com as instituições científicas, a uma cultura de projecto e de intervenção nas escolas. E a pergunta que se pode fazer é: em que ponto estamos? Esta é, talvez, uma pergunta interessante a que tentaremos dar resposta a partir do nosso ponto de vista.
Desde 1996 que o Ciência Viva tem desenvolvido actividades no âmbito da divulgação e cultura científicas para a população em geral, dentro de um espectro muito largo, mas aqui vamo-nos concentrar especialmente nos projectos do ensino experimental das ciências nas escolas, portanto, o Ciência Viva na escola. Estes projectos podem ser consultados, estiveram e estão disponíveis na nossa página Web, onde os cinco concursos lançados têm um historial e uma base de dados que é um repositório de informação interessante e importante para quem trabalha nestas áreas.
E se o Ciência Viva tem conseguido fazer um trabalho sério e exigente, isso deve-se ao contributo, colaboração e acompanhamento de todos, muito em especial das instituições científicas e dos seus investigadores, também dos estudantes e professores das escolas do país. E isso permitiu levar a cabo, nestes anos, as iniciativas de uma forma sustentada. Os professores e os investigadores fizeram em conjunto as suas propostas e as propostas que fizeram foram as que desejaram de facto fazer, não havendo uma imposição nas áreas de conhecimento ou de modelos de
∗ Ciência Viva – Agência Nacional para a Cultura Científica e Tecnológica
projecto. Tinham que obedecer a um princípio: serem concretas e com o objectivo de melhorarem o ensino experimental das ciências nas escolas. As propostas apresentadas eram submetidas a comissões de avaliação e eram apoiadas, também, em termos financeiros. Falamos, de facto, de uma cultura de projecto. Os professores queriam realmente fazer aqueles projectos e, finalmente, tinham condições para os poder fazer. E isso implicou uma grande responsabilização e um grande envolvimento, e foi por isso que o movimento de adesão foi grande.
Por isso também achámos essencial a criação de outras actividades relacionadas com os projectos nas escolas, de entre as quais destacamos os fóruns Ciência Viva.
Os fóruns, em seis anos consecutivos, foram o complemento do trabalho realizado com os projectos e com os professores. Isso significa que sempre tivemos o mais importante para se conseguir fazer: os investigadores, os estudantes, os professores, as famílias, as pessoas. São alianças que se estendem pelo país e também a nível internacional, sendo o Ciência Viva um programa inspirador nestas áreas.
Podemos perguntar como é que a experiência portuguesa mostrou que podia ser melhor nesta matéria? Essencialmente por duas razões: permitiu o envolvimento directo e pessoal entre os cientistas e os não cientistas, e os jovens beneficiam sempre desse contacto directo com quem faz a ciência. Mas também porque permitiu um envolvimento muito forte das escolas e das instituições científicas num trabalho activo e concreto entre investigadores e professores de todos os níveis de ensino, desde o pré-escolar, básico e secundário, até ao ensino universitário e às instituições científicas.
Retomaremos este trabalho levando em conta sugestões recebidas e respondendo a um conjunto de aspirações que têm algum consenso, e que foram geradas numa experiência com milhares de projectos nas escolas, também expressas nos fóruns Ciência Viva e em relatórios anuais da comissão internacional de avaliação e outras decorrentes do acompanhamento desses projectos no terreno.
Assim, parece-nos útil aqui apresentar algumas dessas reflexões sobre
o que consideramos ser a situação actual. No 1.º ciclo do ensino básico a opinião mais consensual parece ser de que é este nível de ensino que reúne as melhores condições para a generalização da obrigatoriedade do ensino experimental no mais curto prazo. As razões mais referidas são, por exemplo, que não são necessários instrumentos técnicos tão sofisticados, há uma menor exigência relativamente aos espaços físicos para fazer a experimentação, o carácter multidisciplinar que este nível de ensino tem, bem como a motivação nos docentes, que tem sido, do contacto que tivemos com os projectos ao longo destes anos, muito grande. Também deve ser referido o facto de ser neste nível de ensino que a curiosidade, naturalmente presente, pode e deve ser estimulada. Por isso se defende que é mais fácil e urgente tornar o ensino experimental das ciências no 1.º ciclo uma realidade permanente.
Nos 2.º e 3.º ciclos do ensino básico, todas as opiniões convergem, reconhecendo que são estes os níveis de ensino mais carenciados e com maior número de obstáculos à generalização do ensino experimental das ciências. Ao contrário do que se verifica no ensino secundário, os estabelecimentos dos 2.º e 3.º ciclos são deficitários, quando comparados com congéneres europeus. A título de exemplo, a percentagem de projectos Ciência Viva neste nível de ensino foi sempre, nos cinco concursos, muito menor do que no secundário e até no 1.º ciclo. Também se pode referir a necessidade de preparação dos professores para uma utilização e uma escolha correcta dos meios técnicos, que leva, entre outras, a situações de falta de segurança.
O secundário é o nível de ensino onde se têm verificado progressos mais significativos em matéria de generalização das aprendizagens experimentais. O ensino experimental está, neste caso, contemplado e recomendado nos diferentes currículos actualmente em vigor. No entanto, a falta de condições em algumas escolas e a necessidade de uma maior aposta na formação, bem como a não inclusão da actividade experimental na avaliação dos conhecimentos, fazem com que, em muitas escolas, a sua prática generalizada não seja ainda uma realidade. A este propósito registam-se algumas tendências que importa corrigir, nomeadamente em termos da realização de actividades experimentais e da utilização dos meios técnicos. A experiência verificada no ensino secundário aponta para uma sobrevalorização de protocolos muito rígidos, limitando assim o espaço de intervenção dos alunos, sobretudo ao nível da formulação das hipóteses e na condução autónoma das experiências. Verifica-se ainda uma tendência crescente para a utilização de equipamentos muito sofisticados e, em muitos casos, inadequados, face às necessidades dos professores e dos alunos.
Entendemos ser oportuno trazer aqui, ao Conselho Nacional de Educação como uma instituição muito exigente, algumas propostas de reflexão e, consequentemente, algumas recomendações.
E a primeira recomendação aponta para a criação de um currículo obrigatório de actividades experimentais para o ensino básico. Existem vários exemplos de actividades experimentais adequadas ao 1.º ciclo. Foi-nos em tempos sugerido um conjunto de actividades experimentais, pela professora Joan Solomon do Centre for Science Education, Open University, Reino Unido, e que podem ser articuladas com outras propostas de actividades já publicadas em Portugal (Providência, C., Alberto, H., Fiolhais (1999); Valente, O. (1983). Assentam em princípios orientadores muito práticos para o 1.º ciclo e optam por meios técnicos de baixo custo. E porquê? Não exigem uma sala específica para trabalho prático, privilegiam uma aprendizagem “à base da experiência das coisas concretas, da observação directa e, depois, do registo, da comparação, de medições”. (Livro de Actas, 2.º Fórum Ciência Viva, 1997:44)
A segunda recomendação aponta para a criação de uma rede nacional de centros de apoio ao ensino experimental das ciências. Os relatórios de progresso dos projectos do Ciência Viva têm referido frequentemente a falta de espaços de formação e de centros de recursos para o apoio ao ensino experimental das ciências, e que funcionem numa perspectiva de descentralização e de partilha de recursos. Uma rede nacional de centros de apoio ao ensino das ciências poderia ser conseguida por duas vias: (1) concebendo novos espaços, por exemplo, em articulação com as propostas actuais de alargamento da Rede de Centros Ciência Viva no país. (2) potenciando espaços e recursos já existentes, em universidades, instituições científicas e centros de formação de professores. Cremos que será importante recordar, a este propósito, a experiência de cooperação entre o Ciência Viva e a comunidade científica, patente nos projectos de colaboração entre escolas, universidades e instituições científicas (Ocupação Científica nas Férias para os Professores e Ocupação Científica dos Jovens nas Férias).
A terceira recomendação aponta para a consolidação de uma rede de contactos pessoais e institucionais, para apoio à resolução de dificuldades sentidas pelos professores nas escolas. Isso significa, por exemplo, criar redes específicas do 1.º ciclo. Este é o nível de ensino onde mais se verifica uma tendência para projectos em rede: agrupamentos de escolas, parcerias entre escolas do ensino secundário e escolas do 1.º ciclo, redes de projectos coordenadas por universidades, instituições científicas e autarquias (estas por via do alargamento das suas competências na gestão das escolas do 1º ciclo). E claro, porque não generalizar um processo que foi iniciado há algum tempo, e que foi a geminação das instituições científicas e das escolas? Esta iniciativa Ciência Viva constituiu uma outra plataforma a partir da qual se construíram relações duráveis. Em 1999, por ocasião do 2.º Fórum Ciência Viva, foi organizada uma sessão plenária para o debate sobre exemplos concretos desta cooperação, na qual investigadores e professores fizeram um balanço das suas experiências, de que destacamos o CNC (Centro de Neurociências de Coimbra), o IBMC (Instituto de Biologia Molecular e Celular) e o IDMEC (Instituto de Mecânica, IST).
A quarta recomendação vai no sentido de potenciar o apoio do Ciência Viva à formação contínua de professores, certificando os professores envolvidos em projectos do ensino experimental das Ciências. Esta tem sido a reivindicação mais consensual entre os milhares de professores que coordenaram e dinamizaram projectos Ciência Viva nas escolas, desde 1997. Trata-se, de facto, de uma aspiração antiga. As exigências deste tipo de projectos, bem como as dificuldades de adaptação ao enquadramento organizacional e legal das escolas, justificam a adopção de uma política de incentivos nesta área. A certificação de professores deverá ser enquadrada num sistema de desenvolvimento profissional contínuo, no contexto do qual se acumulam provas de formação e de prática profissional (sob a forma de um portfólio certificado) que poderão mesmo conduzir a uma qualificação superior em educação. Importa, neste aspecto, potenciar os resultados dos projectos mais bem sucedidos e disseminar as suas práticas, por diferentes meios, incluindo a disponibilização de conteúdos, assistência e consultoria on-line, edição sistemática de materiais de apoio, a ligação a redes de projectos internacionais ou a grupos informais de professores.
A quinta e última recomendação seria investir na formação inicial de professores para o ensino experimental das ciências. A formação inicial de professores tem-se mostrado, em muitos casos, insuficiente para garantir aos jovens professores a confiança necessária para desenvolverem autonomamente um trabalho experimental com os seus alunos. Esta situação é particularmente aguda no caso dos professores do 1.º ciclo, em que muitas vezes a formação inicial não contempla significativamente a área das ciências.
E termino com um título de um artigo, que certamente muitos já conhecem, de Richard Gallagher, editor da Revista The Scientist, e que foi publicado no número de Março deste ano: “Curiosity Won’t Kill Science Classes”. Começa logo por dizer “Estou preocupado com o estado do ensino das ciências”. E enuncia algumas questões que o puseram nervoso, nos últimos meses. “Porque é que a maioria dos estudantes coloca mais ênfase nos requisitos para as suas carreiras do que na paixão, no desejo intelectual do conhecimento? O que é que aconteceu ao espírito de aventura, à excitação, à curiosidade?” E repete: “O que é feito do sentido de curiosidade e experimentação? Não é nisto que os professores devem ser os melhores?”
O pensamento crítico não tem lugar nas aulas de ciências? Isto indicaria uma incrível pobreza para o futuro das ciências.
Debate
Um participante – A questão que queria levantar é a seguinte: será que posso leccionar matemática, se não souber matemática? Começar no ensino básico e secundário, parece-me que poderá não ser eficaz. Pede-se aos profissionais desses níveis que ensinem ciência experimental quando eles próprios, à partida, a maior parte deles, não têm conhecimentos para o fazer. Aliás verifico que há alunos que saem licenciados das universidades, que não são capazes de conduzir devidamente um trabalho experimental. A demonstração experimental propriamente dita requer uma explicação científica. Por exemplo, se quisermos pedir uma experiência de atracção magnética os alunos ficam muito interessados, empregam um íman mas se não houver um suporte de explicação científica, embora simples e acessível a esses alunos, parece-me que os alunos podem ficar maravilhados, muito interessados naquela experiência, mas isso ainda não conduz ao resultado que se pretende. Isto é só para dizer que, aqueles pontos, aquelas recomendações, na minha opinião, estão numa ordem que não é a correcta, embora não tenha dito que seja uma ordem de prioridades. Parece-me que a primeira prioridade seria investir na formação desses docentes, inclusive, parece-me que seria bom investir no doutoramento do docente do ensino básico e secundário. Um doutoramento direccionado para o ensino das ciências experimentais. Parece-me que sem isso será muito difícil atingir esses objectivos de uma forma eficiente.
António Cachapuz – A minha pergunta é muito simples: quando é que se pode saber e até pode ser hoje, se assim o entender, se vai haver de novo
o concurso para os projectos das escolas e quando. Deixou no ar que havia coisas que estavam a ser preparadas, eu próprio e várias pessoas daqui somos responsáveis por departamentos universitários e outros, onde temos essa responsabilidade e capacidade de organização, e essas coisas podem-nos ajudar um pouco a pensar no futuro. Essa é a questão.
Rosália Vargas – Pergunta tão directa e simples de responder!
Vamos começar em breve, pensamos que Setembro será o mês para lançar o concurso. Espero que seja uma boa notícia, não o podemos fazer sem contar com o vosso apoio e o vosso trabalho directo, é só com isso que temos conseguido fazer o trabalho, e, portanto, pensamos que em Setembro poderá ser lançado o concurso para os projectos das escolas. Devo dizer que foi essa essencialmente a grande inovação do trabalho do Ciência Viva, mas era, de facto, uma área muito grande de intervenção, e estamos contentes por poder de novo retomá-la. Vai ser difícil, mas vai ser também muito bom fazê-lo.
Quanto ao resto, isto são recomendações modestas e sem qualquer pretensão que não seja o pô-las em discussão, primeiro num fórum próprio e depois alargado, sobre o que é preciso mudar, porque, de facto, é preciso mudar muita coisa, trabalha-se muitíssimo, e às vezes são pequeninas mudanças que fazem a diferença.
Estou de acordo, a formação inicial dos professores é fundamental para que eles sejam bons professores e que tenham uma boa confiança, porque são jovens, estão a começar um trabalho e precisam de se sentir confiantes nesse trabalho. E, portanto, se não tiverem formação científica adequada, se não tiverem uma didáctica das ciências adequada para poderem dar as suas aulas, será mais difícil consegui-lo. Claro que depois há a formação contínua, que também é muito importante, e creio que, pelo que já tenho percebido ultimamente do Ministério da Educação, estão muito preocupados e que vão mesmo fazer um trabalho sério nessa matéria, no que diz respeito às ciências e à matemática, o que é de louvar, porque já estamos à espera disso há muito tempo.
Segadães Tavares – É essencialmente importante haver uma motivação dos agentes de ensino. É extremamente importante e o objectivo fundamental é despertar a curiosidade dos jovens. Referiu que no ensino secundário deste projecto há uma exigência de equipamentos sofisticados, devo dizer que na minha escola, que é da Universidade Nova de Lisboa, dou aulas ao primeiro ano de engenharia civil. E consigo motivar o interesse dos alunos com um conjunto de experiências que são feitas com clipes, elásticos, fita-cola, sarrafo tirado de uma obra, chumbadas de pesca, e com isso, com equipamentos extremamente elementares (suportados por mim próprio, porque a escola não tem verbas para isso e nem estou preocupado), tenho conseguido motivar os alunos. Ir de encontro aos indivíduos e despertar a curiosidade, é esse o objectivo. Não a fantasia, não o motivo do circo, mas começar pelas coisas simples do dia-a-dia, cativar logo as crianças.
Muito obrigado.
Rosália Vargas – A ciência tal qual se faz! Mãos na massa!
As mudanças curriculares e os professores de Ciências do
Maria da Conceição dos Santos ∗
Bom dia. Começo por agradecer o convite para participar neste Seminário como professora de ciências do 3.º ciclo do Ensino Básico e do Ensino Secundário. Venho apresentar algumas dificuldades que os professores de ciências têm tido na implementação dos novos currículos, quer no Ensino Básico (3.º ciclo), quer no Ensino Secundário (10.º ano). Em consequência o título da minha comunicação é: As mudanças curriculares e os professores de ciências do 3.º ciclo do Ensino Básico e do Ensino Secundário.
O tema deste painel levou-me a estruturar a minha intervenção em três pontos: I) Educação em Ciência em Portugal – situação actual; II) Dificuldades apresentadas pelos professores na implementação dos novos currículos; III) Pontos críticos a trabalhar na perspectiva da mudança.
I) Educação em Ciência em Portugal – situação actual
Sobre a educação e a educação em ciência em particular muitas questões se têm colocado:
Que educação para a nova sociedade? Que tipo de conhecimento e que conteúdos devemos ensinar, ou melhor, levar a aprender? Que tipo de competências pessoais e sociais devemos desenvolver nos alunos? Ciência para alguns ou ciência para todos? Educação através da ciência ou educação em ciência? Educação em ciências ou ensino das ciências?
∗ Escola Secundária D. Luísa de Gusmão
A investigação tem ajudado a encontrar resposta a muitas destas questões e tem contribuído para uma maior compreensão do como a educação em ciência pode conduzir ao desenvolvimento pessoal dos estudantes, ao desenvolvimento da cidadania, mas não descurando a preparação de futuros profissionais para o mercado de trabalho.
Referimos Woolnough (1997), que defende que o ensino da Ciência nas escolas, para além de assegurar que toda a população é cientificamente literada, de forma a que os futuros cidadãos apreciem a Ciência, as suas potencialidades, limitações e implicações na sociedade, para que possam tomar decisões informadas na sua vida enquanto adultos; e para além de assegurar que alguns alunos prossigam carreiras científicas e tecnológicas; terá também de assegurar que o sistema produz suficientes professores de ciências que tornem viáveis os dois primeiros objectivos.
As políticas educativas, também, têm vindo a ser enformadas, pelo menos em alguns aspectos, pelos resultados da investigação em educação em ciência, como mostram as mudanças curriculares recentes. Assim, quer no Ensino Básico, quer no Ensino Secundário, assistimos a revisões/reorganizações curriculares. Procederam-se a alterações nos programas, na organização e funcionamento das escolas, na avaliação, e era pressuposto existirem alterações nas práticas dos professores. Surgem currículos elaborados por equipas que incluíram professores da universidade da área da educação científica e professores dos diferentes graus de ensino. A nova filosofia curricular apresenta três novas áreas curriculares: a área de projecto, o estudo acompanhado e a formação cívica, com a preocupação do desenvolvimento da cidadania. As unidades lectivas passaram a constar de 90 minutos. Os currículos pretendem: desenvolver nos alunos competências; integrar teoria e prática; discutir questões éticas e controversas, utilizar a História da Ciência, desenvolver nos alunos o conceito de sustentabilidade, etc. As situações de aprendizagem propostas incluem os conhecimentos existentes actualmente sobre como aprendem os alunos. Assim, preconizam experiências educativas que constituem experiências de aprendizagem para os alunos, valorizando uma aprendizagem activa. Propõe-se uma educação em ciência mais centrada nos alunos, com envolvimento em trabalho experimental de investigação, realização de projectos e resolução de problemas.
O novo currículo das ciências para o 3.º ciclo do ensino básico é implementado de uma forma generalizada e obrigatória em 2002/2003 no 7.º ano de escolaridade, mas já decorridos sete anos após o início do processo. Existiu um ano de preparação em que foram discutidos conceitos como o de currículo e o de competência. Em 1997 algumas escolas participam no projecto “gestão flexível do currículo”, sendo que, em 2001/2002, o número de escolas que integravam o projecto era de 184. Experiências e materiais foram trocados resultantes deste processo. O novo currículo das ciências surge neste movimento e foi primeiro concretizado em competências específicas e integrado no Currículo Nacional, desenvolvendo-se nas Orientações Curriculares para as Ciências Físicas e Naturais para o 3.º ciclo do Ensino Básico. É um currículo concebido segundo linhas orientadoras para os professores em termos de competências essenciais (DEB, 2001), que está organizado à volta de quatro temas (Terra no Espaço, Terra em Transformação, Sustentabilidade na Terra e Viver Melhor na Terra) e onde se apresentam conteúdos e sugestões educativas para Ciências Naturais e para Ciências Físico-Químicas (CFQ) (Galvão, et al., 2002).
A disciplina de Ciências Naturais, que era leccionada só nos 7.º e 8.º anos de escolaridade, e a disciplina de Ciências Físico Químicas, leccionada só nos 8.º e 9.º anos de escolaridade, passaram a existir nos três anos, 7.º, 8.º e 9.º. A nova organização curricular propõe:
A nível do ensino secundário surge, em 2003, o Documento Orientador da Revisão do Ensino Secundário após uma discussão pública, com destaque para a revisão curricular, que se prolongou por dois meses. Um dos objectivos estratégicos refere-se à necessidade de combater o insucesso e o abandono escolar. Lembramos que, nos países da OCDE, em média 64% da população conclui o Ensino Secundário, enquanto que em Portugal apenas 20% o consegue, o que mostra a ineficiência do nosso sistema educativo.
No mesmo documento são apresentadas novas formas de organização do ensino secundário das quais destacamos o aumento da escolaridade obrigatória para 12 anos e as unidades lectivas de 90 minutos que, e citamos, “proporcionem uma organização e adequação de espaços de aprendizagem mais consentânea com as exigências neste nível de ensino. Afirmam-se, com esta opção, os princípios da articulação das aprendizagens teórico-práticas e da interacção da componente experimental com a componente expositiva.”. Estes são, a meu ver, alguns aspectos positivos, bem como a introdução da área de projecto.
Dos novos currículos somente o do 10.º ano foi implementado no ano lectivo que decorre, o relativo ao 11.º será no próximo ano lectivo e o 12.º somente entrará em vigor em 2006/2007.
Relativamente aos aspectos positivos, e para o 3.º ciclo do Ensino Básico, a própria equipa que elaborou as Orientações Curriculares para a área das Ciências Físicas e Naturais procedeu a um levantamento dos pontos positivos e negativos apontados pelos professores ao porem em acção as mesmas. Esse levantamento deu origem a um parecer sobre alguns aspectos da reorganização curricular do Ensino Básico que foi posteriormente publicado com o título “Inovação no Currículo das Ciências em Portugal. Algumas Perspectivas de Avaliação” (Galvão et al., 2004). Foram recolhidos dados a partir (i) da análise das respostas dadas a um questionário, por 47 professores a leccionar, com excepção de dois, o 7.º ano de escolaridade no presente ano lectivo, (ii) da análise a entrevistas feitas a seis professores orientadores de estágio de CFQ a leccionar o 3.º ciclo do Ensino Básico e (iii) das questões colocadas pelos professores em acções de formação/divulgação.
Os professores apontam como aspectos positivos relativamente aos programas anteriores: a) maior articulação entre os conteúdos das disciplinas CN e CFQ; b) melhor distribuição dos temas organizadores e dos respectivos conteúdos ao longo do 3.º ciclo; c) autonomia, por parte dos professores, e flexibilidade na gestão dos conteúdos; d) pertinência e utilidade das experiências educativas sugeridas para desenvolver nas aulas, com destaque para o papel activo atribuído ao aluno; e) relevância atribuída, pelo documento, ao desenvolvimento de todas as competências; f) ênfase atribuída à componente prática e laboratorial das disciplinas de CN e CFQ; g) pertinência dos temas, interesse e actualidade; h) integração de alguns aspectos da história da ciência e do carácter dinâmico da construção do conhecimento científico, dando especial relevo à relação “ciência, tecnologia, sociedade, ambiente”; i) sugestão apresentada no documento para a existência de um par pedagógico para leccionar a área disciplinar de CFN. Deste modo, atingese uma compreensão mais global e integrada da ciência. (Galvão et al., 2004, p. 348 e 349)
II) Dificuldades apresentadas pelos professores na implementação dos novos currículos
Falámos de mudanças e de orientações curriculares e quando passamos à prática? As aulas são o cerne da escola e o papel do professor é essencial, crucial e único. Que dificuldades sentem eles na adaptação às novas formas de organização do ensino e na implementação dos novos currículos? Não esqueçamos que qualquer currículo apresenta três níveis: o currículo pretendido, o currículo traduzido e o currículo aprendido (Aikenhead, 2004). São os professores acompanhados e ajudados nestes processos de mudança? Na passagem do currículo pretendido ao currículo traduzido? O currículo pretendido tem de ser descodificado e adaptado pelos professores antes de ocorrer aprendizagem por parte dos alunos.
O levantamento das dificuldades que aqui apresento advem do parecer sobre a implementação das Orientações Curriculares para as Ciências Físicas e Naturais, já referido (Galvão et al., 2004), da análise de conteúdo a dez entrevistas feitas a professores de quatro escolas e da minha própria experiência como professora destes níveis de ensino. As dificuldades referem-se a aspectos organizacionais e a aspectos relativos à formação de professores. No caso das CFN aparecem ainda aspectos referentes à interpretação do documento.
a) reduzida carga horária atribuída a CN e CFQ neste ciclo de ensino;
b) elevado número de alunos por turma;
c) não desdobramento das turmas em turnos em algumas escolas;
d) aulas com a escassa duração de 45 minutos;
e) extensão dos conteúdos face à carga horária disponível para as disciplinas
de CN e CFQ, não apenas para o 7.º ano, como para todo o 3.º ciclo; f) articulação, por vezes, difícil no espaço do horário entre os professores de CN e CFQ;
g) falta de recursos da escola, nomeadamente falta de espaços, equipamentos, materiais e auxiliares de laboratório. Foi salientado o facto de existirem manuais escolares com erros científicos.
Se analisarmos as dificuldades apontadas há um aspecto que temos que realçar e que foi referido por muitos dos professores inquiridos, que é o facto de, em consequências das dificuldades referidas, ser muito difícil a realização de trabalho experimental, pelo menos o de natureza investigativa.
a) formação inicial inadequada: a nível pedagógico como seja o controlar a indisciplina e o gerir o tempo; a nível científico, por exemplo na licenciatura de Geologia – ensino, não darem conteúdos relativos ao corpo humano, conteúdos esses que terão que leccionar.
b) formação contínua pouco diversa;
c) falta de acções de formação nas escolas;
d) necessidade de formação sobre a avaliação dos alunos nomeadamente a avaliação de competências;
e) resistência à mudança dos professores.
a) aspectos relacionados com a conceptualização e concepção da natureza do currículo. Aparece como dificuldade maior o facto de as Orientações Curriculares serem pouco pormenorizadas quanto a informação que permita ao professor saber qual o grau de generalidade vs pormenor com que um dado conteúdo programático deve ser seleccionado. De referir que este aspecto é apontado como positivo por alguns professores.
b) a distribuição em temas organizadores e respectivos conteúdos, a leccionar durante os três anos que constituem o 3.º ciclo, é apontada, por alguns professores, como dificuldade. Referem que não existe uma sequência lógica para a distribuição dos conteúdos ou que, por vezes, estes são demasiado complexos (estudo da célula, história da terra e tectónica de placas, ordens de grandeza no universo) ou ainda que o pleno desenvolvimento de competências não é possível, atendendo ao conjunto das dificuldades mencionadas. No entanto, a maioria dos professores considera que os temas organizadores e respectivos conteúdos são adequados à idade dos alunos, se encontram distribuídos numa sequência lógica e que, em conjunto com as experiências educativas propostas, possibilitam o desenvolvimento das competências essenciais definidas para este ciclo de ensino.
c) a linguagem utilizada.
Há uma deficiente interpretação do que é proposto nos documentos oficiais. Isto prende-se com diferentes ordens de razões, inerentes:
a) ao próprio processo de implementação – falhas na comunicação, não se estendendo a discussão sobre questões fundamentais a todos os grupos de professores,
b) à não compreensão da linguagem dos documentos oficiais, devido a dificuldades de esclarecimento e consensos,
c) à resistência a mudar visões tradicionalistas no ensino das ciências, o que faz, por exemplo, com que as Orientações Curriculares sejam lidas à luz dos programas preexistentes, sendo os conteúdos vistos como listagens e não numa perspectiva global e integradora,
d) à compartimentação disciplinar que invalida experiências comuns entre professores de Ciências Naturais e de Ciências Físico-Químicas, não aproveitando das vantagens para os alunos da interdisciplinaridade proposta,
e) à não compreensão do que se considera ser hoje o próprio conceito de ensino das ciências. Nas suas críticas, os professores demonstram uma perspectiva estática da ciência com uma sobrevalorização dos produtos da ciência e uma desvalorização das outras componentes. Nas objecções de alguns professores emerge uma crítica às experiências educativas propostas, por considerarem desvalorizar a transmissão de conhecimentos científicos e valorizar experiências de aprendizagem mais centradas nos alunos, tendo subjacente uma perspectiva construtivista da aprendizagem. Nas críticas formuladas por alguns professores às Orientações Curriculares há, por vezes, uma valorização de práticas anteriores, não revelando sensibilidade às potencialidades do ensino orientado para o desenvolvimento de competências. Adoptam terminologias diferentes, não mudando as práticas.
(Galvão et al., 2004, p. 355 e 356)
Os professores consideram que se subestima a aquisição de conhecimento científico ao promover o desenvolvimento de competências e criticam as experiências educativas propostas por desvalorizarem a transmissão de conhecimentos científicos e valorizarem experiências de aprendizagem mais centradas nos alunos.
O melhor processo para alcançar a compreensão global da política curricular pelos professores acaba por ser a implementação (Aikenhead, 2004). O agir para compreender. E, em qualquer processo existe a necessidade da fase de avaliação. Após um levantamento das dificuldades e aspectos positivos pode-se proceder a reajustamentos e melhoramentos do mesmo. Relativamente ao Ensino Básico os próprios documentos oficiais prevêem um período de três anos para testagem, após o qual qualquer reformulação é possível. No caso do Ensino Secundário ainda nem foram implementados os currículos no 11.º e 12.º anos de escolaridade. Há portanto, agora, um período de adaptação dos professores e escolas e terá que existir um acompanhamento em simultâneo com uma avaliação sistemática das dificuldades/problemas/criticas que forem surgindo. As dificuldades apresentadas apenas são uma primeira imagem, “um sistema completo de avaliação é essencial, de modo a dar uma ideia mais aproximada da realidade que é múltipla e complexa.” (Galvão et al., 2004,
p. 356). Assim, para além do agir para compreender, torna-se necessário avaliar para obter mais dados e compreender para novamente agir.
III) Pontos críticos a trabalhar na perspectiva da mudança
Analisando as dificuldades dos professores, acima referidas, passo a apresentar os pontos que me parecem mais críticos e a necessitarem de uma maior atenção: a formação dos professores e alguns aspectos de organização deverão ser repensados, principalmente a criação de espaços e tempos adequados, bem como alguns aspectos relativos aos recursos educativos.
A formação de professores será talvez o aspecto essencial a ter em conta e onde agir para uma melhoria da educação em ciências. Deverão existir preocupações com a formação inicial, mas muito com a formação
contínua de forma a ser efectiva a passagem do currículo pretendido ao currículo traduzido e finalmente ao currículo aprendido. Como defende Freire (2004), “para empenhar os professores no processo de mudança, eles precisam de novos conhecimentos, competências e disposições e de se sentirem confortáveis ao pôr o currículo em acção. Para que isso aconteça, importa criar situações promotoras de aprendizagens e que contribuam para o seu desenvolvimento profissional.” (p. 586). E as acções de formação de professores, inicial ou contínua, deverão incorporar os conhecimentos produzidos pela investigação, senão teremos práticas inadequadas aos objectivos educacionais (Oliveira, 1999). Tentar introduzir a investigação, na prática pedagógica do professor, levá-lo a questionar e a tomar consciência das suas concepções, levá-lo a implementar práticas lectivas que estejam em sintonia com as finalidades expressas no currículo nacional, levando-o a sentir a necessidade de introduzir na sala de aula estratégias diferentes das que usualmente utiliza, são aspectos a ter em conta na formação dos professores de ciências.
Nos aspectos organizacionais, e quanto aos recursos, ver se realmente existem os mínimos necessários à implementação dos novos currículos nas escolas e criar um sistema de avaliação dos manuais escolares.
Mas o mais importante é que deverá ser repensada a criação de espaços e tempos adequados à educação em ciência que pretendemos, nomeadamente se se pretende atingir uma das prioridades do Ministério da Educação – o ensino experimental. O tempo e a sua gestão é uma das problemáticas importantes para a implementação do trabalho experimental, especialmente quando os professores são confrontados com um programa extenso e horários com tempos lectivos compartimentados e manifestamente insuficientes, neste caso dá preferencia ao conhecimento factual e faz demonstrações (Hodson, 1993). A realização do trabalho experimental, a integração da teoria com a prática (permitindo a realização de investigações experimentais e não só de meros exercícios práticos) implicará, em minha opinião, um repensar da carga horária dada às ciências. O número de alunos por turma e o desdobramento da mesma em turnos, bem como a criação de espaços que permitam as parcerias pedagógicas são, também, factores importantes a considerar. Sendo o trabalho experimental uma característica sine qua non do ‘bom’ ensino das ciências (Miguéns, 1990), tendo existido um grande investimento desde há muitos anos no trabalho laboratorial e experimental, nomeadamente com as disciplinas Técnicas, com a formação dada pelo Ministério de Educação “Ensino Experimental das Ciências”, que formou professores acompanhantes, com o Ciência Viva, existe agora a necessidade de verificar se os espaços e os tempos consignados por lei para
o ensino das ciências são realmente adequados à educação em ciência que pretendemos.
Indo ao passado, lembro que, num relatório internacional de 1994, Ambrósio et. al., caracterizava o ensino das ciências em Portugal como dominado pelo livro do aluno, enquanto recurso, pelo uso de estratégias expositivas como método comum e pelo limitado uso do TE. Em Abril de 1999, para o Seminário “Ensino Experimental e Construção de Saberes”, realizado em Maio do mesmo ano, M. O. Valente coordenou um estudo realizado pelo Conselho Nacional de Educação que tentou dar uma visão do panorama nacional sobre a situação relativa das práticas de ensino experimental, as condições materiais existentes e as principais razões que justificam a pouca frequências dessas práticas. Foram construídos dois questionários, um dirigido aos coordenadores dos grupos de disciplinas de Ciências que enviaram às escolas do 2.º e 3.º Ciclos do Ensino Básico e às escolas do Ensino Secundário, e um outro enviado aos responsáveis de escolas do 1.º Ciclo do Ensino Básico, para ser respondido por professores dessas escolas. Relativamente ao primeiro caso, foram analisados 163 questionários referentes a 96 escolas quer de zonas rurais quer de zonas urbanas. Sobre a frequência do trabalho experimental concluiu-se que há situações, numa percentagem de quase 20%, em que não se realiza qualquer trabalho experimental e que a grande maioria apenas o realiza algumas vezes por ano, sendo que a percentagem relativa a algumas vezes por ano vai diminuindo do 2.º para o 3.º e para o secundário. Surge como razão principal mais invocada para a não realização de trabalho experimental a falta de sala minimamente adequada, seguida da falta de equipamentos e da falta de tempo. Surge também a falta de funcionário. Numa questão em que se pedia para caracterizarem a situação do ensino e indicarem quais as razões dessa situação, a maioria diz ser má e aponta as razões fundamentais que apresentamos em ordem decrescente:
Como consequência deste estudo, afirmou então Valente (1999):
“Feito o balanço destas respostas, provenientes das Escolas do 2.º e 3.º Ciclos do Ensino Básico e Secundário, torna-se claro que existe uma crise profunda no ensino experimental das ciências, e que não basta resolver um dos problemas. Estão todos encadeados (...) tornase muito claro que a situação do ensino experimental atingiu tais níveis de insuficiência que só com medidas drásticas poderá vir a alterar-se. Só um grupo de missão que tenha a capacidade de actuar a nível dos vários elementos do sistema, actualmente em total disfuncionamento, pode fazer alguma diferença. Não basta fornecer equipamentos. São necessários salas, funcionários de apoio, um currículo articulado, formação dos professores, horários compatíveis, que contemplem os objectivos dos TE e um trabalho sistemático de avaliação.” (p. 151 )
Em 2004, Santos, num estudo ainda a decorrer, e da resposta a um questionário sobre o trabalho experimental que hoje se realiza no Ensino Secundário, de 3409 alunos do 12.º ano, do agrupamento 1-Cientifico-Natural, pertencentes a 60 escolas nacionais, concluiu que somente 15,5% dos alunos realizaram, ao longo dos três anos, alguma vez, investigações experimentais.
Neste momento muitas questões se levantam. O desaparecimento das disciplinas de Técnicas Laboratoriais; o facto de a matriz curricular proposta para o Curso de Ciências e Tecnologias retirar as disciplinas de Física, Química, Biologia e Geologia do núcleo das disciplinas obrigatórias do secundário, dando-lhes um carácter opcional; e a diminuição acentuada dos tempos lectivos atribuídos às ciências, não irão, estas medidas diminuir a componente prática? Afectar/diminuir a formação cientifica dos estudantes? Afectar/diminuir a literacia científica dos cidadãos?
E mais, com o processo de Bolonha e a redução da duração dos cursos superiores, maior será a responsabilidade do ensino secundário na formação cientifica, básica e sólida dos jovens.
Há realmente a necessidade de avaliar as mudanças propostas, de avaliar para compreender e novamente agir, tudo para conduzir a mudanças que melhorem a Educação em Ciência e permitam que ela contribua efectivamente para uma aprendizagem da Ciência e em simultâneo para o desenvolvimento dos nossos alunos. Como afirmei em 2002 “a escola deve não só fornecer os conhecimentos fundamentais para uma formação inicial dos cidadãos, mas também permitir e fomentar o desenvolvimento da capacidade necessária ao processo construtivo da sua formação e auto-formação”. (p.15). É realmente a qualidade das aprendizagens que visamos.
Referências
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DEPARTAMENTO DA EDUCAÇÃO BÁSICA (2001): Currículo nacional do ensino básico. Competências essenciais. Lisboa: Departamento da Educação Básica.
FREIRE, AM. (2004). Formação de Professores. Mudança de Concepções de Ensino dos Professores num Processo de Reforma Curricular. In: Departamento da Educação Básica.
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GALVÃO, C. (Coord.), A.A NEVES, AM. FREIRE, AM. LOPES, M.C. SANTOS, M.C. VILELA, M.T. OLIVEIRA e M. PEREIRA. (2004). Inovação no Currículo das Ciências em Portugal. Algumas Perspectivas de Avaliação. In: Departamento da Educação Básica.
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M.C. SANTOS (2001). Ciências Físicas e Naturais. Orientações curriculares para o 3.º ciclo do ensino básico. Lisboa: Departamento da Educação Básica.
HODSON, D. (1993). Re thinking Old Ways: Towards a More Critical Approach to Practical Work in School Science. Studies in Science Education, 22, 85-142.
MIGUÉNS, M. (1990). Practical Activities in Portuguese 10-12 School Science: Teacher’s Views and Practices. Tese de Mestrado em Educação. Bristol: Universidade de Bristol.
OLIVEIRA, M.T. (1999). Trabalho Experimental e Formação de Professores. Seminário Ensino Experimental e Construção de Saberes. Lisboa: Conselho Nacional de Educação.
SANTOS, M.C. (2002). Trabalho Experimental no Ensino das Ciências. Lisboa: Instituto de Inovação Educacional.
VALENTE, M. O. (1999). As Vozes das Escolas. Seminário Ensino Experimental e Construção de Saberes. Lisboa: Conselho Nacional de Educação.
WOOLNOUGH, B.E. (1997). Motivating students or teaching pure science? School Science Review, 78 (285), 67-72.
Constança Providência ∗
Sumário
A Ciência é um tema que atrai indiscutivelmente as crianças com idades entre os 4 e os 10 anos. Através das ciências a criança aprende a conhecer o mundo em que vive, afasta- se criticamente do mundo de magia e desenvolve um pensamento lógico e atitudes de rigor e tolerância. Apresentamos alguns exemplos que poderiam ser abordados na sala de aula e discutimos algumas dificuldades existentes no ensino das ciências no 1.º ciclo.
1 Introdução
A criança nos seus primeiros anos de vida tem uma curiosidade natural perante tudo o que a rodeia. Ela interroga-se constantemente sobre o mundo, procurando explicações para o que observa. “Porque é que a Lua não cai?”, “Porque é que fica noite?”, “De onde veio a água, antes dos lagos e dos mares, das nuvens e da chuva?” ou “Nós fomos bebés, os pais foram bebés, os avós foram bebés. Como apareceram os primeiros bebés?” são algumas das perguntas que coloca aos adultos com quem contacta, sejam eles os pais, professores ou familiares. Está nas mãos dos educadores não abafar essa curiosidade natural e, bem pelo contrário, manter viva a necessidade de ver, tocar, fazer, para por fim compreender. Precisam para isso de ter uns rudimentos de cultura científica.
Apresentarei algumas experiências pessoais desenvolvidas com crianças do ensino pré-primário e primário. Em particular, este tema interessa-me porque, trabalhando na área da Física, fiquei surpreendida com
o tipo de perguntas que as minhas filhas me colocavam. Rapidamente
∗ Departamento de Física da Universidade de Coimbra
percebi que no ensino pré-primário e primário, em geral, não era explorada e aprofundada esta área do saber: a ciência.
A educação de uma criança nunca será completa se as ciências experimentais forem desprezadas porque é precisamente objectivo da ciência compreender e descrever a natureza. É através dela que a criança estabelece referências, desenvolve a inteligência e o raciocínio. A ciência ajuda a criança a desenvolver um pensamento lógico e atitudes de rigor e tolerância abrindo-a ao real e afastando-a racionalmente do mundo da magia.
É também importante não esquecer que no mundo técnico em que vivemos é necessário compreender um mínimo da sua linguagem.
Questiona-se frequentemente a necessidade de aulas experimentais no ensino básico referindo-se que as situações consideradas no laboratório são tão afastadas da vida real que não ajudam a resolver os problemas com que aí nos debatemos. Esta posição será possivelmente correcta se o trabalho laboratorial desenvolvido não estiver ligado a qualquer questão colocada anteriormente à qual se pretende dar uma resposta, testando as possíveis hipóteses previamente apresentadas. No entanto, a construção do conhecimento científico envolve diversas etapas. Numa primeira fase, a observação da realidade que desperta a nossa curiosidade, e nos leva, numa fase posterior, a formular interrogações e colocar hipóteses. Numa fase seguinte procuramos respostas e a experimentação é frequentemente o único caminho possível. Seguidamente confrontamos os resultados observados com as explicações dadas inicialmente, após análise e compreensão dos resultados obtidos. Finalmente comunicamos as conclusões tiradas. Através deste processo, adquirimos um conhecimento objectivo que poderá ser testado por todos. Verificamos que a experimentação é apenas um passo num processo muito mais complexo. Analisar a importância da experimentação isoladamente não faz, por isso, sentido.
2 Alguns exemplos
Apresentamos nesta secção alguns exemplos concretos de experiências que poderão ser desenvolvidas com crianças com idades dos quatro aos dez anos. Alguns dos temas poderão ser abordados em idades diferentes sendo explorados de acordo com o desenvolvimento da criança.
A noção de densidade é difícil. Ela só é transmitida aos alunos do 3.º ciclo do ensino básico, e mesmo nestas idades existem dificuldades de aprendizagem. No entanto, a criança desde cedo gosta de brincar com água e descobrir quais os objectos que se afundam e quais os que flutuam. Ela é particularmente atraída por barcos. Descobrir quais são os objectos que se afundam ou flutuam e organizar os resultados das observações é uma actividade que entusiasma as crianças, preparando-as por um lado para a noção difícil de densidade mas, acima de tudo, mostrando-lhes como funciona a ciência [2, 3, 4, 5].
Mostremos uma maçã e uma batata. À pergunta: flutuam ou afundam-se? a criança dará uma resposta. Se lhe perguntarmos porque deu essa resposta ela possivelmente não sabe. Mas questionada sobre como a poderá confirmar, rapidamente responderá: “Colocando na água!” Deste modo ela pode testar diferentes objectos feitos de diferentes materiais (uma maçã, uma batata, uma rolha de cortiça, um pedaço de madeira, um clipe, um prego, um bocado de plasticina, isto é todos os objectos que estiverem à mão e possam entrar na água). De modo a poder sistematizar as observações, é conveniente preencher uma tabela de duas entradas indicando o nome do objecto e se se afunda ou flutua. Numa idade pré-primária a tabela terá de ser pictórica. A compreensão da tabela construída e a apresentação das conclusões constitui uma última fase da abordagem da questão.
Na primeira fase a criança apenas separa os objectos em dois grandes grupos: os objectos que flutuam na água e aqueles que se afundam. Mas é possível ir mais longe. Podemos perguntar: “Será que o tamanho altera a propriedade de flutuar ou se afundar?” A criança apresentará as suas hipóteses que serão facilmente testadas experimentalmente. Cortemos a batata em pedaços de tamanho diferente: a batata afunda-se e todos os pedaços de batata por mais pequenos que sejam também se afundam. O contrário passa-se com a maçã. A criança aprende que a propriedade de se afundar ou flutuar é independente do tamanho. Perguntemos agora: “E a forma é importante?” Podemos perguntar concretamente se conseguem pôr um pedaço de plasticina a flutuar. Depois de confirmarem que a plasticina se afunda, começam automaticamente a testar formas do tipo jangada ou barco. Finalmente haverá alguém que constrói um barco que não se afunda e conclui que realmente a forma é importante.
Estas actividades serão um bom ponto de partida para a discussão de temas do tipo “de que materiais são construídos os barcos e por que razão?” ou, muito mais abrangente, “meios de transporte”.
A construção de um pequeno helicóptero de papel (um origami, do japonês dobragem em papel [3]) é uma oportunidade para levantar várias questões às crianças. “Porque é que o mesmo pedaço de papel cai de modos diferentes consoante a forma?” Em particular, comparando a queda do helicóptero com a queda de uma bola de papel feita precisamente com a mesma quantidade de papel, verifica-se que a bola cai muito mais depressa. A criança observa e é obrigada a pensar no problema e a sugerir hipóteses de interpretação dos resultados.
O helicóptero poderá ainda ser abordado do ponto de vista tecnológico. “O que posso fazer para melhorar o meu modelo de modo a cair mais devagar ou de modo a rodar mais depressa? O que acontece se usar outros tipos de papel, fizer a cauda mais comprida ou pelo contrário as asas mais compridas, aplicar clipes na cauda do helicóptero?” Todas estas situações terão de ser testadas para se chegar a uma conclusão. As crianças percebem que a resposta a certas questões exige um estudo experimental que elas próprias podem efectuar e que nem sempre nos livros encontram a resposta que procuram. Aos poucos começam a perceber como e porquê evoluem as máquinas.
Finalmente o helicóptero pode ser utilizado para ensinar a fazer medições de tempo com um cronómetro: “Quanto tempo demora o helicóptero a cair do primeiro andar? Repetindo a medição várias vezes porque não obtemos sempre o mesmo resultado? Quais são as dificuldades sentidas ao realizar as medições?” Medir tempos deixará de ser uma dificuldade dos alunos do 9.º ano que ainda se manifesta mesmo nas provas experimentais das Olimpíadas de Física!
Explicar o que é e como funciona a força da gravidade poderá não ser um tema fácil de abordar ao nível do 1.º ciclo mas há decerto actividades que podem ser desenvolvidas e que vão ajudar a criança a dar resposta a algumas das suas interrogações, como por exemplo “Porque é que a Lua não cai?’’.
Explorar este tema será uma oportunidade para primeiro discutir com os alunos o que pode pôr um objecto em movimento ou alterar-lhe o movimento. Um simples feijão ou berlinde em cima da mesa servirá para tirar algumas conclusões: o berlinde só se move se o empurrarmos, ou pára se o interceptarmos, muda de direcção se o obrigarmos a isso tocando-lhe. Apenas quando é exercida uma acção sobre o objecto, ele altera o seu estado de movimento. A esta acção chamamos força.
Numa fase posterior largamos o berlinde no ar e verificamos que ele cai. Relacionando com a discussão anterior podemos explicar que na verdade o berlinde é puxado pela Terra: é a força da gravidade que o põe em movimento. É uma força diferente da discutida anteriormente por não ser de contacto e actuar à distância. A força da gravidade puxa todos os objectos em direcção ao centro da Terra. Voltando à pergunta inicial: “E então a Lua não está sujeita à força da gravidade? Porque é que a Lua não cai sobre a Terra?” A seguinte experiência [6] permite perceber em parte o que se passa: deitamos uma mão cheia de feijões num balde de praia, e agarrando-o pela asa, pomos o balde a girar. Os feijões não caem por estarem em movimento. É verdade que as forças envolvidas neste exemplo e no exemplo da Lua não são exactamente as mesmas, mas este exemplo serve para ilustrar que o comportamento dos feijões depende de estarem ou não em movimento circular. O mesmo se passa com a Lua. Se a Lua não estivesse em movimento não se manteria em torno da Terra.
Uma bússola, que recebeu de presente, marcou muito o pequeno Albert Einstein quando ele tinha cerca de 5 anos [7]. Qualquer criança se encanta quando tem uma bússola na mão. A bússola pode ser o ponto de partida para diferentes temas da disciplina Estudo do Meio: magnetes e suas propriedades, propriedades magnéticas dos diferentes materiais, forças, pontos cardeais e orientação no espaço, hora solar e relógio de sol.
“Que materiais são atraídos por um magnete? Sem querer, misturas uma caixa de clipes com papelinhos de carnaval: como poderias apanhá-los rapidamente? O que acontece ao ponteiro de uma bússola se aproximares o pólo norte/sul do magnete?” São exemplos de perguntas que poderão ser utilizadas para iniciar uma discussão e um trabalho de descoberta sobre os magnetes.
À pergunta “Que materiais são atraídos por um magnete?” as crianças rapidamente darão uma resposta depois de experimentarem aproximar diferentes materiais de um magnete. Compreenderão que os materiais não metálicos não são atraídos e que, na verdade, apenas alguns materiais metálicos são atraídos. Tendo em conta apenas objectos que os alunos geralmente manuseiam, conseguirão identificar com a ajuda do professor que os objectos atraídos contêm ferro ou aço, ou ainda, no caso das moedas, níquel.
A segunda questão proposta é apenas uma aplicação directa das conclusões tiradas a partir da primeira pergunta. Separação de materiais usando magnetes é um método utilizado não só na investigação científica como também em tarefas do dia-a-dia, como, por exemplo, na separação de lixos.
A construção de uma bússola constitui uma outra aplicação das propriedades dos magnetes. O planeta Terra comporta-se como um grande magnete cujo pólo sul está, presentemente, próximo do norte geográfico. Se um magnete se puder mover livremente ele orientar-se-á de modo que o seu pólo norte aponte aproximadamente para o pólo norte geográfico. Colocando uma agulha de aço previamente magnetizada e colada a uma pequena fatia de cortiça a boiar num prato com água, observar-se-á que a agulha se orienta de modo a apontar para o norte [3].
Uma bússola servirá para iniciar uma discussão em torno do tema orientação no espaço, e por que não, a construção de um relógio de Sol.
A construção de um relógio é um projecto multidisciplinar que poderá ser desenvolvido por crianças do 3.º ou 4.º anos.
Dando respostas a várias perguntas, as crianças vão percebendo os
Há diferentes tipos de relógios de Sol e será necessário escolher aquele que se pretende construir: equatorial, horizontal ou vertical [8]. Nos relógios horizontal e vertical a criança observará que as marcas das horas não estão igualmente espaçadas.
Uma vez construído o relógio, é ainda necessário discutir qual é a diferença entre a hora legal e a hora solar, saber o que é hora de Inverno e hora de Verão e aprender a ler as horas no relógio de sol.
É interessante analisar as opiniões de alunos do 3.º ano durante a avaliação de todo o processo de construção de um relógio de Sol. Em particular, à pergunta “O que não funcionou?”, responderam: “Esquecemo-nos de marcar as horas; a estaca era muito grossa e por isso era difícil marcar a posição correcta da sombra; a balsa e a cartolina empenaram; as paredes da sala fizeram sombra sobre a base; a palhinha saiu do sítio; foi muito difícil determinar pela sombra a posição exacta do Sul”.
Quando lhes perguntámos o que tiveram de aprender responderam: “Os pontos cardeais, para que lado está o Sul, como funciona o relógio de Sol, como transformar as horas solares em horas legais, como medir e marcar ângulos, o que é a latitude e a longitude, onde fica o meridiano de Greenwich e o Equador, como marcar as horas na base do relógio”.
3 Ciências na sala de aula
O ensino das ciências no 1.º ciclo não requer muitos recursos. Um canto da sala ou um armário pode ser transformado no local reservado para guardar o material das experiências ou o lugar escolhido para expor os objectos bonitos ou interessantes que os alunos trazem para a escola: uma pedra, uma pena, um dente, um insecto morto, uma folha, um magnete, um pião, um ninho.
O material para as experiências poderá ser constituído por objectos simples da vida de todos os dias (garrafões e garrafas de plástico, copos de iogurte, embalagens de bebidas, copos, pratos), instrumentos de medida (termómetros, cronómetros, réguas, medidas de capacidade) e mais algum material simples como lanternas, bússolas, espelhos, magnetes, o globo terrestre.
A existência do caderno de experiências, o caderno onde cada criança regista as suas descobertas, interpretações e resultados, é também essencial no ensino das ciências. Permite ao professor compreender o ritmo da criança e constitui um meio de comunicação com a família.
4 Dificuldades dos professores
Apesar do fascínio que as ciências despertam nas crianças, este tópico não tem sido explorado como convém nas escolas do 1.º ciclo do ensino básico e jardins de infância. O maior entrave à sua implementação é a falta de formação dos professores. A formação científica de grande percentagem dos professores pouco mais vai além do 9.º ano de escolaridade. É uma formação essencialmente teórica e que não abrange todos os temas do 1.º ciclo. As escolas superiores de educação nunca dedicam muito tempo (apenas um ou dois semestres) aos conteúdos e métodos das ciências experimentais, sejam elas as ciências exactas ou as ciências da natureza, apenas se preocupando com a forma como o ensino é ministrado e não com
o conteúdo. É preocupante que nas escolas superiores de educação e nas universidades os conteúdos científicos não sejam ensinados convenientemente e que frequentemente o sejam por quem não é especialista. Na prática, os professores do 1.º ciclo têm medo de não saber, de não conseguir responder às perguntas que os alunos colocam ou de não conseguir interpretar os fenómenos que observam. Além disso, não adquiriram um espírito prático para realizar experiências simples sem dificuldade, nem têm a formação mínima necessária que lhes permita tirar proveito da imensa oferta existente nas livrarias. O professor do 1.º ciclo é um professor multidisciplinar que não pode ser especialista em todos os tópicos que lecciona. Ele não tem tempo nem meios para descobrir quais os temas científicos mais adequados para estas idades e como desenvolvê-los. Este trabalho deve ser feito por especialistas [1] e estar bem claro nos programas definidos pelo Ministério de Educação. O Currículo Nacional do Ensino Básico de 2001 [9] apenas define as competências que se espera que os alunos adquiram ao longo da sua formação, não especificando como poderão essas competências ser desenvolvidas. Esta situação contrasta com os currículos de países como o Reino Unido, a Austrália, a Nova Zelândia, o Canadá onde o modo de atingir os níveis de desenvolvimento pretendidos para cada grupo etário é claramente especificado.
Em Portugal, a abordagem da ciência no 1.º ciclo é em grande parte definida pelas editoras e autores dos manuais escolares, que presentemente se baseiam no documento “Organização Curricular e Programas – 1. Ciclo do Ensino Básico’’ [10], anterior à publicação do Currículo Nacional do Ensino Básico de 2001.
5 Erros científicos em manuais escolares
O manual escolar poderia ser um importante instrumento de trabalho para o professor do 1.º ciclo, que, tendo uma formação multidisciplinar, não possui a formação científica necessária para se sentir auto-suficiente e capaz de seleccionar os próprios temas a trabalhar com os alunos. No entanto, os manuais de Estudo do Meio são muito deficientes, contendo, além de fracas propostas para actividades, erros científicos. Torna-se importante a introdução de um sistema de avaliação que aprove os livros escolares antes de estes entrarem no mercado.
Como exemplo, indicamos alguns erros encontrados em livros da disciplina Estudo do Meio: no livro Joaninha 4 [11] é afirmado “Somente a água é capaz de passar pelos três estados”, “No espaço tudo é branco e negro. (...) . A Terra é a única nota de cor (...)” e ainda “Os sábios supõem que a Terra foi já uma estrela, (...)”. Por outro lado, o spray que sai de uma lata de spray é apresentado como um material no estado gasoso e o telefone é dado como exemplo da propagação do som num material sólido.
Nos livros Retintim 4 [13] e Despertar 2 [14] é dada uma imagem errada do movimento de translação da Terra em torno do Sol, quer mostrando todo o espaço entre a Terra e Sol iluminado onde apenas quase só existe vazio, e por isso nada pode reflectir a luz do Sol [13], ou ainda indicando de modo errado o sentido do movimento [14]. Dois erros muito comuns nos livros do 1.º ciclo são a representação da lua nova por uma bola negra no céu nocturno [12] e uma nuvem como exemplo da água no estado gasoso [15]. O primeiro mostra um total desconhecimento da razão de ser das fases da Lua e nomeadamente que em posição de Lua Nova, se fosse possível ver a Lua, seria durante o dia. É aliás durante o dia que ocorrem os eclipses solares precisamente por a Lua se encontrar alinhada com a Terra, entre o Sol e a Terra. O segundo erro deve-se ao facto de se querer dar uma imagem de um gás quando isso não é possível. Recentemente, estes e outros erros foram identificados e analisados [16].
6 Conclusão
Presentemente, nota-se uma grande abertura das educadoras(es) professoras(es) ao ensino das ciências. No entanto, estes professores queixam-se frequentemente de uma formação deficiente nesta área e um receio de abordarem temas ligados às ciências experimentais. O próprio método científico não lhes é suficientemente familiar para que consigam que os seus alunos o comecem a aplicar.
Foi feita uma investigação [16] sobre a preparação que os futuros professores do 1.º ciclo recebem, quer nas escolas superiores de educação, quer nas universidades e, salvo raras excepções, nem todos os temas contidos nos programas do Ministério da Educação são abordados nos seus currículos. Torna-se, por isso, necessário acompanhar os professores nas escolas, de modo a que eles possam recorrer a alguém em caso de dificuldades, e dar-lhes a possibilidade de obterem formação contínua nas áreas das ciências experimentais.
Perante um panorama generalizado de falta de formação dos nossos professores na área das ciências, é igualmente importante que as escolas superiores de educação e as universidades reflictam sobre a preparação que estão a dar aos seus alunos e proponham novos currículos. É ainda necessário fomentar intensamente a colaboração entre professores, cientistas e especialistas da didáctica das ciências, pois só assim será possível propor temas apropriados a crianças de idade escolar e abordar convenientemente esses temas. Terá de acabar o divórcio existente entre Departamentos Científicos e Departamentos Pedagógicos.
Com a recente reestruturação das escolas em agrupamentos verticais, uma outra hipótese de superar o problema seria criar uma estreita colaboração entre os professores do 1.º ciclo e Jardim de Infância e os professores do 2.º e 3.º ciclos do mesmo agrupamento. A colaboração poderia ser tanto a nível da planificação e ensino das ciências experimentais como a nível de clarificação de dificuldades relacionadas com as aulas.
Referências
[1] GEORGES CHARPAK, As ciências na escola primária, Editorial Inquérito, 1997.
[2] JOAN SOLOMON E JANINE Lee, The `SHIPS’ Project, The Association for Science Education, 1991
[3] CONSTANÇA PROVIDÊNCIA, HELENA VIEIRA ALBERTO E CARLOS FIOLHAIS, Ciência a Brincar, Bizâncio e Sociedade Portuguesa de Física, 1999.
[4] CONSTANÇA PROVIDÊNCIA E ISABEL MARIA SCHRECK DOS REIS, Ciência a Brincar 2: Descobre a Terra! , Editorial Bizâncio e Sociedade Portuguesa de Física, 2001.
[5] CONSTANÇA PROVIDÊNCIA, BENILDE COSTA E CARLOS FIOLHAIS, Ciência a Brincar 3: Descobre a água! , Editorial Bizâncio e Sociedade Portuguesa de Física, 2003.
[6] CONSTANÇA PROVIDÊNCIA, MANUEL PAIVA, NUNO CRATO E CARLOS FIOLHAIS, Ciência a Brincar 4: Descobre o céu! , Editorial Bizâncio e Sociedade Portuguesa de Física, a publicar.
[7] ABRAHAM PAIS, “Subtil é o Senhor: Vida e Pensamento de Albert Einstein”, Gradiva, 2004.
[8] Relógios de Sol, Ciência Viva.– Agência Nacional para a Cultura Científica e Tecnológica, http://www.cienciaviva.pt/rede/himalaya/home/guia5.pdf
[9] Currículo Nacional do Ensino Básico.– Competências essenciais, Paulo Abrantes (coordenador geral), Departamento da Educação Básica, Ministério da Educação, 2001.
[10] Organização Curricular e Programas, Ensino Básico.– 1.º ciclo, Departamento da Educação Básica, Ministério da Educação, 2004.
[11] ANTÓNIO M. COSTA, Joaninha 4, Edições Nova Gaia, 2003.
[12] M. AURÉLIA CARNEIRO E ANA PINTO, Bambi 4, Porto Editora, 1998.
[13] A. MIRANDA E C F. LOPES, Retintim 4, Porto Editora, 1998.
[14] HORTÊNCIA NETO, Despertar 2, Edições Livro Aberto, 2004.
[15] ANTÓNIO MONTEIRO, Saber quem somos, Livraria Arnado, 2000.
[16] YANETH SIMÕES MOREIRA, Tese de Mestrado (em conclusão), Universidade de Coimbra, 2005.
O lugar da investigação em Didáctica na promoção da sua qualidade
Nilza Costa ∗
1. Introdução
Dada a complexidade e abrangência do assunto em análise, o Ensino das Ciências em Portugal, optou-se, nesta comunicação, por se apresentar um olhar (de uma investigadora em Didáctica das Ciências há mais de vinte anos) sobre o Ensino das Ciências/EC em Portugal com incidência no 3.º Ciclo do Ensino Básico/3EB. A principal razão desta opção justifica-se por se considerar que a actual situação do EC nesse nível de ensino constitui um caso paradigmático: o discurso político que o enquadra é altamente inovador, porém, o conhecimento disponível sobre as suas práticas, ao nível das escolas, não o evidencia. Consideramos, ainda, que o cenário escolhido constitui um bom exemplo para sustentar o argumento que temos vindo a defender (Costa, 2003), de que a desejável mudança de paradigma nas práticas só ocorrerá se se unirem os esforços dos decisores da política educativa, dos investigadores educacionais e dos professores.
A nossa comunicação encontra-se organizada em cinco secções: para além desta Introdução, far-se-á, de seguida, uma breve incursão sobre a situação do EC em Portugal, incursão essa que não pode deixar de ser, no momento actual, enquadrada por indicadores, não só nacionais, mas também internacionais (secção 2). A secção 3 incidirá sobre o EC no 3EB. Aí sintetizam-se as “vozes”, quer das políticas educativas actuais (principalmente, através de normativos curriculares), quer das práticas (principalmente, através do conhecimento emergente da investigação em Didáctica das Ciências). Por fim, mas ainda nesta secção, serão apontadas as principais razões que, no nosso entender, são responsáveis pela discrepância
∗ Departamento de Didáctica e Tecnologia Educativa da Universidade de Aveiro
existente entre essas duas “vozes”. Na secção 4 apresenta-se um possível caminho para alterar a discrepância referida. Na última secção, tece-se uma consideração final que procura sistematizar um fio condutor do pensamento que passarei a expor.
2. O Ensino das Ciências em Portugal: um olhar à luz de indicadores
nacionais e internacionais
Na sociedade global de hoje e, também, como país-membro que somos da Comunidade Europeia (CE), não nos parece legítimo olhar para qualquer assunto, nomeadamente do foro educacional, sem ter em linha de conta, para além de directrizes e indicadores nacionais, também os europeus e internacionais.
Não nos parece ser aqui necessário procurar muitos argumentos sustentadores da importância da educação científica e tecnológica do cidadão do século XXI e da importância do papel que a escola em geral, e o ensino das ciências em particular, deve ter na sua promoção. Igualmente desnecessário parece-nos ser fornecer evidências de que o EC em Portugal tem estado muito aquém dos desafios que lhe têm sido, e continuarão a ser, colocados.
Porém, apenas cinco aspectos a reter.
1.º – É cada vez mais notória, a nível internacional e nacional, a importância a ser dada a uma formação de base em ciências, a chamada literacia científica1, de qualquer cidadão do século XXI (Martins, 2003, dá um profundo desenvolvimento a esta temática).
1 Adopta-se aqui a definição de literacia científica (LC) como a “capacidade de cada indivíduo de usar o conhecimento científico, de reconhecer questões científicas e de retirar conclusões baseadas em evidência, de forma a compreender e a apoiar a tomada de decisões acerca do mundo natural e das mudanças nele efectuadas através da actividade humana”. Como consequência, a LC evidencia-se ao nível dos processos, dos conteúdos e dos contextos (GAVE, 2004, p. 49).
Citando, apenas, uma evidência dessa importância, refira-se o documento da Comunidade Europeia, assinado por todos os ministros responsáveis pela Educação e Formação dos estados-membros, que define, entre outras dimensões, os objectivos estratégicos para a Educação e Formação na Europa a realizar até 2010 (CE, 2002). Ao longo das 42 páginas desse documento é bem visível a importância acima mencionada (ver, por exemplo, objectivo estratégico 12 e respectivo objectivo conexo 1.23).
2.º – É inegável o papel da escola, e do ensino das ciências no desenvolvimento da literacia científica, assim como no desenvolvimento de uma formação sólida e aprofundada em ciências e tecnologia para todos aqueles que optem por seguir carreiras profissionais nessas áreas (ver a este propósito o documento atrás referido e, em particular, o objectivo 1.44 aí definido).
3.º – No entanto, indicadores internacionais e nacionais têm demonstrado o baixo desempenho dos alunos portugueses no que diz respeito à literacia científica (GAVE, 2004), bem como à escolha de cursos da área das ciências (CE, 2002, p. 36). Não querendo ignorar as críticas que têm sido feitas aos estudos realizados e de onde emergem esses indicadores (Goldstein, 2004) e, também, as razões que podem ser imputadas ao atraso em que Portugal se encontrava até meados do século XX a muitos níveis, e nomeadamente na educação, como consequência do regime salazarista, parece-nos inquestionável a necessidade de se melhorar o EC em Portugal.
2 Objectivo estratégico 1: “Melhorar a qualidade e a eficácia dos sistemas de educação e
de formação na UE, à luz dos novos requisitos da sociedade do conhecimento e das
mudanças registadas no ensino e na aprendizagem” (CE, 2002, p. 12)
3 Objectivo 1.2: “Desenvolver as competências necessárias à sociedade do conhecimento”
onde se incluem, entre outras, “(…) as competências básicas em ciências” (CE, 2002,
p.16)
4 Objectivo 1.4: “Aumentar o número de pessoas que fazem cursos técnicos e científicos” (CE, 2002, p. 19)
4.º – Sem pretender simplificar a complexidade na procura de razões para o insucesso referido (reduzido desempenho e envolvimento dos alunos portugueses em Cursos de Ciências), uma que parece bastante consensual, pelo menos ao nível dos investigadores educacionais (Cachapuz, Praia e Jorge, 2002), é o tipo de ensino das ciências que ainda caracteriza muito do que se faz nas nossas escolas. Isto é, e muito sumariamente, um ensino baseado em modelos transmissivos onde se privilegia a aprendizagem de conhecimentos descontextualizados, em particular histórica e socialmente.
5.º – O tipo de ensino referido embate, fortemente, nas exigências da sociedade actual e nas suas implicações educacionais, em geral, e das Ciências, em particular.
A sociedade actual, designada por muitos de sociedade da informação e do conhecimento, é caracterizada por um elevado grau de complexidade, incerteza e imprevisibilidade (Morin, 1991), onde a informação pode conferir conhecimento e o conhecimento, visto mais como uma “construção de relações e de redes de significados” do que como um “bem passível de ser transmitido e acumulado por processos lineares e rígidos” (Toralles-Pereira, 1997, citando Machado, 1995), pode (e deve) conferir competências no sentido do desenvolvimento integral das pessoas (Almeida, 2004).
Face a estas características da nossa sociedade, diversos autores e estudos têm apelado para a necessidade de uma mudança de paradigma na educação (e, consequentemente, nas escolas e seu ensino). Por exemplo, o Relatório da UNESCO, elaborado pela Comissão Internacional para a Educação no século XXI (Delors et al., 1998), refere a necessidade de a educação, do presente e do futuro, assentar em quatro pilares: aprender a conhecer; aprender a fazer; aprender a viver com os outros e aprender a ser. Com algumas similitudes, Morin (2002) apela para que a educação passe a valorizar novos saberes5, até então ignorados (“os buracos negros da educação”), saberes esses que fazem apelo: ao desenvolvimento integral do indivíduo, isto é, não apenas na sua dimensão do saber (conhecimento), mas também na dimensão do saber-fazer, do saber aprender e do saber ser; à compreensão do conhecimento como uma entidade dinâmica, evolutiva (onde o erro é uma oportunidade para aprender) e não-fragmentada (indo além dos saberes puramente disciplinares).
A este propósito, mas agora no contexto nacional, veja-se o Relatório do estudo publicado pelo Conselho Nacional da Educação sobre os “saberes básicos” que todos os cidadãos do século XXI deverão desenvolver (Cachapuz, Sá-Chaves e Paixão, 2004). Neste relatório é identificada, e justificada, a necessidade de a escola actual ajudar a desenvolver nos alunos cinco saberes básicos: aprender a aprender; comunicar adequadamente; cidadania activa; espírito crítico e resolver situações problemáticas e conflitos.
Em consonância com o referido, diversos estudos internacionais e nacionais sugerem que a Educação (e o Ensino das Ciências) valorize:
–o desenvolvimento integral dos alunos, nas suas múltiplas dimensões, permitindo-lhes serem actuantes face a problemas locais e globais como, por exemplo, consumos e opções energéticas, desenvolvimento sustentável (Jenkins, 2003);
– uma compreensão da ciência como uma entidade “dinâmica (viva, incompleta e em permanente evolução)” (UNESCO e ICSU, 1999);
–“objectos de estudo” que assentem em problemas abertos, contextualizados, onde seja possível estabelecer relações inter e
5 Os sete novos saberes considerados por Morin (2002) são: o conhecimento (enfatizando-se a sua dimensão dinâmica, em que o erro deve ser valorizado); o conhecimento pertinente (isto é, contextualizado e que rompa com uma visão fragmentada e puramente disciplinar do mesmo); a condição humana (onde se realça a unicidade e a complexidade da natureza humana); a identidade planetária (em que se inclui o desenvolvimento da solidariedade entre as diferentes parte do mundo); a compreensão face às incertezas (aprender a viver com as incertezas, tornando-as numa mais valia); a compreensão dos outros e de si mesmo (no sentido da compreensão mútua entre os seres humanos conducente ao desenvolvimento de valores como o da Paz); a antropo-ética (realçando o papel da ética humanitária no desenvolvimento do cidadão do mundo).
transdisciplinares, assim como metodologias de aprendizagem diversificadas e conducentes ao desenvolvimento de competências, no sentido de os alunos serem capazes de mobilizar, na resolução de problemas com algum grau de complexidade, diferentes tipos de saberes (Cachapuz, Praia e Jorge, 2002).
Os cinco aspectos anteriormente mencionados evidenciam bem a urgência de pensar (e agir) em formas de melhorar a qualidade do EC em Portugal, nomeadamente na linha de pensamento explicitado.
3. O Ensino das Ciências/EC em Portugal no 3.o ciclo do Ensino Básico/3EB: um caso em que o discurso das políticas educativas não tem encontrado eco nas práticas lectivas (nem vice-versa…)
Conforme já mencionámos, a nossa opção em nos centrarmos no EC no 3EB advém, do ponto de vista da autora, corroborado por outros investigadores (Cachapuz, Sá-Chaves e Paixão, 2004; Duarte e Sequeira, 2005), do facto de considerar que existem condições, nomeadamente ao nível do discurso político, para a ocorrência de boas práticas nas escolas. Isto é, práticas que promovam aprendizagens significativas nos alunos na direcção e segundo caminhos apontados por directrizes nacionais e internacionais relativamente ao ensino das ciências. Contudo, a existência de indicadores provenientes da investigação educacional questiona a ocorrência dessas práticas. A questão é, então, procurar compreender essa situação e identificar meios que possam promover a desejada mudança de paradigma nas práticas lectivas.
Nesta subsecção faz-se uma análise das políticas educativas portuguesas, aqui consideradas, apenas, como aquelas que são emanadas do poder central, relativamente ao Processo de Reorganização Curricular do Ensino Básico, em geral, e ao que se refere ao EC no 3EB, em particular. Como já dissemos, iremos defender aqui a visão de que essas políticas estão
em consonância com orientações internacionais sobre a educação, o ensino e
o EC, explanadas anteriormente6.
O Processo de Reorganização Curricular do Ensino Básico em Portugal nasceu em 1996, por isso há quase 10 anos, embora a definição dos seus Princípios, Medidas e Implementação só tenha sido publicada em 2001 (Decreto-Lei n.º 6/2001). Relembremos que esse processo:
– se iniciou gradativamente, conforme se esquematiza na Tabela 1
Fases e sua calendarização | Breve Descrição |
Abril-Setembro 1996 | Definição de linhas orientadoras do processo de reorganização curricular tendo por base pareceres e estudos desenvolvidos (a pedido do DEB e por diversos especialistas educacionais) no âmbito da “identificação de pontos críticos na educação básica” (DEB, 1997, p. 13). |
Ano lectivo de 1996/97 | Implementação do Projecto “Reflexão Participada sobre os Currículos do Ensino Básico” que tinha como principal objectivo, através do envolvimento de professores e escolas, contribuir para a melhoria da contextualização e adequação do currículo. Elaboração de diversos documentos e ocorrência de fóruns de discussão sobre a temática. |
Ano lectivo de 1997/98 – 2000/01 | Implementação do Projecto “Gestão Flexível do Currículo”, no qual participaram: em 1997/98, 10 escolas piloto; em 1998/99, 33 escolas; em 1999/00, 93 escolas e em 2000/01, 184 escolas. Produção de diversas obras (por ex. DEB, 2001a), documentos … e sua distribuição pelas escolas. |
Ano Lectivo de 2001/02 … | Generalização a todas as escolas e anos de escolaridade, do 1.º e 2.º ciclos, e integrado gradativamente no 3.º ciclo, nos anos lectivos seguintes. |
Tabela 1: Principais fases do Processo de Reorganização Curricular do Ensino Básico em Portugal
– contou com a participação de vários parceiros educativos (também evidenciado na Tabela 1);
6 Não posso deixar de prestar aqui uma homenagem muito especial ao colega e amigo Paulo Abrantes, o grande impulsionador dessas políticas.
– foi alvo da elaboração de vários documentos de suporte que foram (e ainda estão) disponibilizados no site do Ministério da Educação.
Porém, do nosso ponto de vista, corroborado por outros autores (Galvão et al., 2004), esse processo não foi suficientemente monitorizado e avaliado pelos decisores políticos, aspecto que retomaremos mais adiante.
Como elementos-chave, conceptuais e metodológicos, deste processo, com particular incidência no EC, destacamos:
– Uma nova visão de currículo.
Uma nova visão de currículo, de desenvolvimento e de gestão curricular, que, nas palavras de Abrantes (2001, p. 37), faz emergir no seio da comunidade educativa “a necessidade de se romper com a visão de currículo como um conjunto de normas a cumprir supostamente uniforme em todas as salas de aula (…)”. Ao invés, o desenvolvimento curricular deve assentar no binómio Currículo Nacional (aprendizagens essenciais) – Projectos Curriculares de Escola e de Turmas (currículo adaptado às características do contexto de cada escola e de cada turma).
Concomitantemente, surge a noção de professor como gestor de currículo que, nas palavras de Roldão7 (1999, p. 49), significa que ao professor caberá “(…) decidir e gerir o quê e o como da aprendizagem, face ao para quem e para quê – ou seja, trabalhar o desenvolvimento curricular como um processo de decisão e gestão curricular (…)”. A este propósito a referida autora desmistifica a tão comum ideia de que não é possível inovar porque o que é necessário é “cumprir os programas oficias”: “Um programa não se cumpre, o que tem que ser cumprido é o currículo, a aprendizagem para cuja consecução ele foi organizado. (…) O programa tem que ser trabalhado, modificado, adaptado, repensado até que o percurso de aprendizagem se concretize de facto”. (Roldão, 2003, p. 29).
7 Maria do Céu Roldão, é, também, um marco em todo o Processo de Reorganização
Curricular do Ensino Básico. Quando pensamos, mais especificamente, no ensino das
ciências, nesse contexto, não podemos deixar de referir, também, Cecília Galvão.
Quanto ao EC, poderemos encontrar evidências do referido em Galvão et al., 2001:
“A área disciplinar de “Ciências Físicas e Naturais”, através dos conteúdos científicos que explora, (…) [permite] que a aprendizagem [dos alunos] decorra de acordo com os seus ritmos diferenciados. (…) A opção pelo termo orientações curriculares em vez de programas inscreve-se na ideia da flexibilização curricular, tentando que o currículo formal possa dar lugar a decisões curriculares que impliquem práticas de ensino e aprendizagens diferentes. (…) A designação “Orientações Curriculares” aparece para dar ênfase às possibilidades de gestão dos conteúdos e de implementação de experiências educativas, por parte dos professores, de acordo com os alunos e contextos diferenciados”.
Está-se, assim pensamos, a incluir na educação princípios considerados fundamentais para a sociedade do século XXI, nomeadamente
o do respeito pela unicidade, diversidade e complexidade dos contextos e da condição humana.
– Um currículo perspectivado para o desenvolvimento de competências nos e com os alunos.
O Decreto-Lei n.º 6/2001 consagra a concepção e implementação de um currículo orientado para o desenvolvimento de competências nos e com os alunos. Em consonância com o referido são, posteriormente, publicados normativos curriculares que assim o operacionalizam, por exemplo, o denominado “Currículo Nacional do Ensino Básico – Competências Essenciais”(DEB, 2001b). Aqui se especifica, por um lado, um conjunto de competências gerais, consideradas essenciais a desenvolver ao longo do ensino básico e, por outro, um conjunto de competências específicas, para cada área disciplinar ou disciplina. Neste normativo, a concepção adoptada de competência é a que “diz respeito ao processo de activar recursos (conhecimentos, capacidades, estratégias), em diversos tipos de situações, nomeadamente situações problemáticas”(DEB, 2001b, p. 9).
De referir a actualidade da perspectiva acima enunciada quando, recordando Delors et al. (1998), se faz apelo a que a educação desenvolva diversos tipos de saberes, em particular do domínio do saber-fazer (englobando o desenvolvimento de competências).
Um currículo perspectivado para o desenvolvimento de competências, nomeadamente para competências gerais, implica, também, uma abordagem de saberes a ser feita com e pelos alunos que rompa com as fronteiras de uma só disciplina. Surge, assim, um outro conceito-chave inerente ao discurso político do processo de reorganização curricular do ensino básico.
– Um currículo que vai além da lógica puramente disciplinar.
Vários indicadores desta evidência podem ser encontrados nos normativos curriculares. Por exemplo, em DEB (2001b) afirma-se que o Currículo do Ensino Básico “não se identifica com uma adição de disciplinas” (p.10), mas que dele fazem parte “temas transversais às diversas áreas disciplinares” (p. 10), como a educação ambiental, a educação sexual, por exemplo, assim como “novas áreas [que não as estritamente disciplinares], de natureza transversal e integrada (…) a Área de Projecto, o Estudo Acompanhado e a Formação Cívica” (p. 11).
Quanto ao Ensino das Ciências, destaque-se a criação de uma nova área curricular para o 3.º ciclo do Ensino Básico, as Ciências Físicas e Naturais (Decreto-Lei n.º 6/2001) que, embora integrando duas disciplinas (as Ciências Físico-Químicas/CFQ e as Ciências Naturais/CN), procura abordar temas numa perspectiva interdisciplinar, promovendo, assim, uma “compreensão global, não compartimentada” dos mesmos (DEB, 2001b,
p. 130). Em concordância com o mencionado, a abordagem dos temas parte “dos fenómenos para a sua explicação biológica, física, geológica, química, em interacção muitas vezes com a geografia e a matemática.” (Galvão, 2002, p. 8).
Mais uma vez afirmamos que estamos perante perspectivas actuais que se desejam para a educação, nomeadamente, a do desenvolvimento de saberes não fragmentados e compartimentados, numa lógica do conhecimento relevante (Morin, 2002).
No entanto, só será possível desenvolver esse tipo de EC se se “quebrar com o trabalho isolado dos professores, permitindo-lhes a decisão na gestão de conteúdos, a organização concertada das disciplinas de CN e de CFQ, a planificação conjunta das actividades para os alunos.” (Galvão et al., 2004, p. 3). Se acrescentarmos a isto a visão, já referida, de que a gestão curricular das disciplinas deverá atender ao contexto de cada turma e escola, chegamos ao último conceito-chave que gostaríamos de realçar.
– Uma nova cultura para a escola e para os professores, cultura essa assente numa perspectiva de projecto e de colaboração.
Muito do que foi dito tem fortes implicações para o modo como as escolas e os professores se deverão organizar para “dar voz”, dentro de cada especificidade e contexto, às orientações emanadas da política educativa.
Assim, mesmo assumindo a perspectiva de que as escolas e os professores não devem ser vistos como meros transmissores das políticas educativas, mas, sim, decisores políticos e gestores do currículo, é inegável a necessidade de uma mudança ao nível das culturas de escola e dos professores. O que hoje é pedido às escolas e aos professores terá que passar, assim, pela criação de uma nova cultura profissional, que Alonso (2004) designa de cultura de projecto. Segundo a mesma autora, essa cultura passa pela “procura de uma visão estratégica partilhada, centrada na qualidade das aprendizagens, que se constrói com base na participação de todos os actores a partir da acção reflectida e avaliada, de forma continuada.” (2004, p. 150), o que implica, também, o “aprender com os outros” (Delors et al.,1998).
Julgamos não existir em curso nenhum estudo de avaliação das práticas no contexto do Processo de Reorganização Curricular, nomeadamente sob iniciativa da tutela. Porém, temos conhecimento de que essa preocupação tem existido em estudos recentes levados a cabo por investigadores educacionais, em particular no que diz respeito ao EC (Galvão et al., 2004; Abelha, 2005; Duarte e Sequeira, 2005; Ferreira, 2005, em curso, Martins, 2005).
Esses estudos têm fornecido indicadores, sustentados em resultados, que nos ajudam a descrever quão distantes as práticas das escolas e as práticas (e concepções) dos professores estão das orientações provenientes das políticas educativas.
Sem pretendermos ser exaustivos, apresentamos, na Tabela 2, alguns desses resultados em função do que consideramos ser os principais elementos-chave, conceptuais e metodológicos, do Processo de Reorganização Curricular.
Elementos-chave | Indicadores, sobre as práticas, resultantes de estudos de investigação educacional |
Nova visão de currículo, desenvolvimento e gestão curricular | Visão de currículo como “programa a cumprir” (Duarte e Sequeira, 2005) Reduzida alteração das práticas como consequência do processo de reorganização curricular (Galvão et al., 2004; Martins, 2005) |
Currículo centrado no desenvolvimento de competências | Noção errónea de que a lógica de competências subestima os saberes disciplinares (Galvão et al., 2004) Não apropriação do actual conceito de competência (Galvão et al., 2004; Martins, 2005) |
Currículo que ultrapassa a lógica disciplinar | Lógica disciplinar de currículo (Duarte e Sequeira, 2005) |
Cultura da escola e dos professores | Cultura balcanizada em torno de uma lógica meramente disciplinar (Abelha, 2005) Prevalece a leccionação independente das duas disciplinas da área de Ciências Físicas e Naturais (Duarte e Sequeira, 2005; Ferreira, 2005) |
Tabela 2: Resultados de estudos de investigação sobre as práticas de Ensino das Ciências no âmbito do Processo de Reorganização Curricular do Ensino Básico, em função de elementos-chave do discurso actual das políticas educativas.
Embora, do nosso conhecimento, seja reduzido o número de estudos que procurem descrever e compreender dinâmicas de boas práticas8 , resultados de alguns estudos realizados (por exemplo, Duarte et al., 2005) mostram uma valorização muito positiva das inovações levadas a cabo, por parte dos professores e dos alunos envolvidos.
Resultados de estudos de investigação atrás referidos assim como de reflexões que temos efectuado, levam-nos a considerar que as razões que podem estar na base do afastamento das práticas e das políticas devem ser alocadas aos três actores que têm responsabilidades neste processo: os decisores da política educativa, os investigadores educacionais e os professores.
– falta de uma política consistente ao nível da formação contínua de professores;
Qualquer mudança educacional, e mais ainda quando o que está em causa são mudanças profundas no modo de pensar e de agir, “só pode vir a ter sentido e a ser profundamente eficaz se tiver com ela os professores que têm de a implementar. E, para isso, os professores precisam de ser informados e também formados” (Freitas, 2001, p. 10). No entanto, existem indicadores (Duarte e Sequeira, 2005) da reduzida oferta formativa em áreas fulcrais do Processo de Reorganização Curricular, em particular relativas ao EC.
– ausência de mecanismos de acompanhamento, monitorização e avaliação do processo de implementação da reorganização curricular.
Boas Práticas aqui entendidas como práticas, enquadradas pelas actuais políticas educativas, bem sucedidas.
Corroboramos completamente o pensamento de Galvão et al. (2004,
p. 12) quando argumentam que “a avaliação de um currículo não se pode desligar do seu modelo de implementação”. Acrescentam, ainda, a necessidade de se avaliar durante todo o processo de implementação. Esta necessidade justifica-se, mais ainda, devido à complexidade do processo em causa. À complexidade estão inerentes incertezas e imprevisibilidades que urge desde logo acompanhar, até para se introduzirem eventuais alterações nas trajectórias planeadas.
– falta de um novo modelo de avaliação do desempenho docente que valorize aqueles que verdadeiramente se empenham nas mudanças desejadas.
Relativamente às duas últimas razões, poderemos encontrar uma justificação para as mesmas em Roldão (2003) quando esta refere o défice de cultura avaliativa da nossa realidade portuguesa. Défice esse a que nem os órgãos de comunicação social são alheios (ver Figura 1).
Figura 1: Ilustração do défice de cultura avaliativa na realidade educativa portuguesa [Fonte: adaptado do Jornal Público, 23 de Janeiro de 2005, p. 29]
Pensamos ser urgente mudar esta realidade. Recorremos a Vilar (1993) para reforçar esta nossa ideia, na medida em que a avaliação é:
“(… ) o procedimento que dá garantias de que um projecto social e humano não se desenvolve ao sabor do acaso e/ou da apregoada intuição humana, que constituem, aliás, factores impeditivos ou obstáculos epistemológicos de qualquer acção consequente (…).”
(1992, p. 7)
Referir-nos-emos aqui a duas razões: uma relativa à natureza da investigação produzida e, outra, aos meios de comunicação privilegiados para divulgar as investigações.
Quanto à primeira razão (natureza da investigação produzida), consideramos que continua a prevalecer o desenvolvimento de estudos, de tipo quantitativo, voltados para a descrição e compreensão “do que se faz”, insistindo-se em constatar que “o que se faz está mal”. Sem pretender minimizar a importância desses estudos, imprescindíveis certamente numa fase em que se conhece pouco do que acontece, e sabendo, também, que a comunidade científica responsável pela publicação de estudos (e aqui falo não só da realidade nacional mas internacional) ainda oferece alguma resistência a estudos de natureza qualitativa, pensamos que seria importante conduzir investigações que procurassem casos de boas práticas (com o sentido que atrás lhes atribuímos), procurando compreender as dinâmicas envolvidas e, também promovendo a sua disseminação.
A segunda razão prende-se com o público-alvo privilegiado pelos investigadores para comunicar e divulgar os seus estudos: a comunidade académica, os investigadores. Se compreendo, por um lado, a importância de se chegar a esse público, como meio de validar e partilhar conhecimento produzido e, por outro, sabendo que a carreira académica o privilegia, isso deixa, muitas vezes, pouco (ou nenhum) espaço para que os investigadores cheguem a outros actores que poderiam, também, beneficiar do conhecimento por eles produzidos, nomeadamente os professores e, mesmo, os decisores políticos.
Ao nível dos professores
Uma das características apontadas ao Processo de Reorganização Curricular foi a produção de numerosos documentos sustentadores do mesmo e, também, a sua divulgação para as escolas. Porém, e embora não possa apoiar esta minha opinião em qualquer evidência empírica, é comummente referida a falta de hábitos (ou défice de cultura?) de leitura de material desse tipo. Os professores, e aqui já há evidência empírica, subestimam, muitas vezes, fontes de informação que poderiam ser enriquecedoras das suas práticas, rejeitando, até, por vezes, um conhecimento mais teorizante (Costa, 2003). Também rejeitam, frequentemente, outros Colegas que optam por desenvolver o seu conhecimento profissional, nomeadamente através da frequência de Cursos de Pós-Graduação nas Universidades, e que poderiam trazer mais valias para as instituições a que pertencem (Costa, 2003). Posturas como as referidas não são certamente alimentadoras de mudanças e de inovações.
Enquanto íamos desenvolvendo o nosso pensamento nesta subsecção, fomo-nos deparando com algumas dificuldades. Por exemplo, se é certo que os investigadores comunicam pouco com os professores, também o é que estes não valorizam, muitas vezes, o conhecimento produzido pela investigação. Por outras palavras, o processo utilizado de procurar razões centradas em apenas um dos actores não resultou completamente. Assim, na busca de possíveis caminhos que possam potenciar a qualidade da educação, não pudemos deixar de colocar a tónica senão na interacção dos três agentes de mudança.
4. O Ensino das Ciências em Portugal no 3.o ciclo do Ensino Básico: uma proposta de acção para potenciar a sua qualidade
Falámos ao longo desta comunicação em três dos actores que consideramos fulcrais para a desejada melhoria do Ensino das Ciências: os decisores da política educativa; os professores e os investigadores. Várias vezes temos referido que, apesar dos diferentes papéis e responsabilidades de cada um deles, os três têm uma finalidade última comum: a melhoria da Educação.
Então, se assim é, porque parecem andar tão afastados? No cenário considerado (EC no 3EB) demos alguma evidência de que o discurso dos decisores da política educativa tem chegado pouco aos professores; por outro lado, referimos, também, a insuficiente comunicação entre investigadores e professores; os decisores políticos, ao não terem optado por incluir mecanismos de monitorização sistemática do processo de implementação da reorganização curricular, também acabaram por não ouvir (ou ouvir pouco) os professores.
Não explicitámos muito, mas poderíamos tê-lo feito, da mais valia que temos desenvolvido ao trabalhar, em projectos, conjuntamente com professores dos ensinos básico e secundário (Costa et al., 2004 é apenas um exemplo, outros poderão ser encontrados em Costa, 2003). Também outros investigadores o têm referido (por exemplo, Caetano, 2003).
Juntando os três argumentos (finalidade última comum dos três actores; insuficiente comunicação entre eles; mais valias que podem advir se se juntarem discursos e práticas), a reflexão que temos feito na procura de caminhos que possam vir a potenciar a qualidade do EC, passa sempre por uma ideia-chave: a necessidade de fomentar diálogos (aprendendo com) entre esses três actores.
A resposta à questão de como o fazer ainda não a temos. No entanto, a reflexão conduzida acerca do cenário em análise tem-nos sempre remetido para a importância de introduzir a avaliação como mecanismo possível de mediação e potenciação do diálogo, que defendemos como necessário para incrementar a qualidade da Educação e do Ensino. Concretizando um pouco: vimos que as políticas educativas, emanadas do poder central, para o ensino em geral (e das ciências, em particular), para o ensino básico, eram inovadoras. No entanto, vimos, igualmente, que isso não era de modo algum suficiente para melhorar a qualidade do ensino. Acreditamos que essa situação se possa vir a alterar se se introduzir a confrontação do que se espera (do poder político, dos professores, dos investigadores), do que ocorre (ou não) nas práticas, e do seu porquê, através de mecanismos sistemáticos de recolha e análise de informação (isto é, através da avaliação). Vamos mais longe, afirmando que esse processo avaliativo iria, até certamente, melhorar ainda mais as políticas.
Em consonância com o acima exposto, apresentamos uma proposta de acção, que esquematizamos na Figura 2, passível de contribuir para a melhoria do ensino (nomeadamente das ciências) ao nível do ensino básico).
Decisores da Política Educativa
Instituições de EnsinoEscolas
Superior (Lugar privilegiado de (Lugar privilegiado para o Investigação em Didáctica Ensino das Ciências) das Ciências)
Sistemas de Avaliação
Figura 2: Esquema de proposta de acção para potenciar a qualidade do Ensino das Ciências
5. Em jeito de conclusão
Esta comunicação já vai longa e, por isso, termino por onde comecei, pelo seu título. Hoje, após ter pensado mais maduramente nesta apresentação do que na altura em que enviei o seu título ao CNE, considero redutor aquele que escolhi. Assim, se fosse hoje, mandaria, caro colega e amigo Manuel Miguéns, o seguinte:
“O Ensino das Ciências (no 3.º Ciclo do Ensino Básico) em Portugal: a urgência de se juntarem discursos e práticas, das políticas educativas, dos investigadores e dos professores, num contexto mediatizado pela avaliação”.
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Debate
Vicente Ferreira – A minha formação é de engenheiro e portanto esta questão é, para mim, fulcral. Preocupa-me imenso aquilo que se está a passar, hoje, em Portugal, mas já percebemos também que não é um problema nacional, é um problema global. E agrada-me imenso ver o esforço que se está a fazer no sentido de tentar inverter essa situação. O que me parece é que esse esforço vai ter que ser seguramente muito maior, sobretudo porque existem, a meu ver, alguns problemas colaterais que naturalmente condicionam estas situações. Desde logo um problema social: a desvalorização social de algumas profissões da área das ciências traz claramente uma desmotivação das crianças para essa área. Penso que há uma outra questão que tem também um problema colateral, é a questão do brinquedo, e desculpem-me trazê-lo aqui. É que o brinquedo é fundamental na vida das crianças. E o brinquedo que temos hoje não é um brinquedo adequado à nossa sociedade. O brinquedo de hoje tem três grandes defeitos: é muito perfeito, e o facto de ser muito perfeito não permite que se estrague, é muito sofisticado o que não permite que a criança o desmonte, porque depois não tem recuperação e vai para o lixo e é muito caro. E, portanto, esta questão do brinquedo não é uma questão de somenos importância, porque, ao não desenvolver o espírito de descoberta na criança, e claramente que não o desenvolve pelas razões que já referi, vai naturalmente induzir essa falta de potencialidade na criança para a descoberta. E o resultado final é, naturalmente, ele é muito mais atraído por um jogador de futebol, que tem uma belíssima imagem, que ganha muito bem, e que efectivamente veste bem as roupas de marca e tudo o mais, do que para um Einstein que até nos parece como uma figura de louco. Portanto, há aqui realmente algumas questões que me parecem fundamentais colaterais a estas questões de ensino.
Vítor Manuel Trindade – Trabalho na Universidade de Évora em didáctica das ciências. E o panorama que conheço é aquele que a Prof.ª Nilza apresentou. Há realmente uma fraquíssima apropriação dos conceitos da reorganização curricular, os motivos pelos quais isso acontece, se calhar, levar-nos-iam longe, contudo, quero só chamar a atenção de uma coisa que não foi aqui dita e me parece relevante. Foi dito há pouco, no princípio, que a educação em ciências e a ciência devem ter uma ligação muito íntima, e naturalmente que sim, e que a ciência tem, de alguma forma,
o culto da racionalidade. E realmente a reorganização curricular, do meu ponto de vista, promove esse culto. Tenho uma experiência semelhante à da Prof.ª Nilza, estive há muito pouco tempo num país estrangeiro a apresentar uma comunicação num encontro, e depois naquelas reuniões de corredores, de café, de jantares, falávamos sobre isto e sobre aquilo, e perguntaram-me como era, e eu lá consegui explicar como pude, como era a organização do nosso ensino básico, no ensino das ciências, e foi realmente muito elogiado. A irracionalidade provém de que temos um projecto educativo de escola que geralmente não é feito. Sobre esse projecto educativo de escola, temos que fazer um projecto curricular de escola, que geralmente também não é feito. Há um factor de socialização secundário importante, é que os jovens são socializados quando fazem os estágios, é uma socialização secundária na medida em que eles vão ter que dar aulas, não como foram ensinados a dar, mas como na escola onde estão a trabalhar querem que se faça. O que acontece é que, e falava-se há pouco na extensão dos programas, aquilo que é a imagem e representação comum dos professores são os programas, porque também não têm a noção de currículo. A noção de currículo que têm é a noção do programa, do conteúdo programático, da listagem, e quando lhes aparece no básico quatro áreas temáticas para eles desenvolverem como quiserem, da forma que entenderem ou pela ordem que quiserem, não sabem! Esta é a verdade! E, portanto, a formação contínua, a implementação deste currículo falhou, prestou-se aqui homenagem ao Paulo Abrantes, eu associo-me a ela, – falhou porque provavelmente a equipa que veio a seguir não lhe deu continuidade. E os nossos professores, a grande maioria deles, não sabe como há-de trabalhar aquilo. E, portanto, vai ser o descalabro. Penso que a formação contínua dos professores é, neste momento, algo que deve ser prioritário, na medida em que, do ponto de vista teórico, as reacções que tive foram iguais às da Prof.ª Nilza, toda a gente entende que aquilo é muito bom.
António França – Sou professor de química e, para além de todas as coisas interessantes que tenho aqui ouvido hoje, tenho aprendido muito com certeza, gostava só de fazer um comentário sobre a última intervenção a respeito do ensino das ciências. Todos os exemplos que foram dados foram da física. Sou professor de química e preocupa-me muito que também não se encontre, não se procure, experiências de química. É que aqui há um drama enorme, ainda maior do que as “outras ciências”, que é o drama da imagem social que a química e os químicos têm. E se não começarmos a trabalhar com os mais jovens na importância e no valor da química na sociedade e no nosso modo de viver e de conservar o ambiente, podemos correr sérios riscos ainda maiores do que aqueles que estamos a correr agora. E por isso gostava de comentar que pelo menos também se procure algumas experiências de química, e estou disponível para propor algumas que são fáceis de fazer.
Um participante – Vou ser muito rápido e só quero manifestar o meu espanto, porque, segundo uma das oradoras da manhã, – e não posso aceitar isso de forma nenhuma – há manuais escolares com erros! Isso é extremamente grave! E não sei que medidas é que o Conselho Nacional de Educação pode tomar contra isso.
Uma participante – Gostaria de agradecer a todos os participantes neste painel pelas quatro intervenções que foram muito importantes, embora focando aspectos todos diferentes uns dos outros. E eu gostaria aqui de dar a minha opinião pessoal, é apenas um comentário sobre a importância da formação de professores para que tudo isto possa ser mudado. De facto, as instituições de formadores de professores estão conscientes dessa necessidade, mas existe aqui uma questão que não foi abordada no conjunto das quatro intervenções. Quer dizer, não houve ninguém que pegasse nela, embora a colega Nilza Costa tivesse falado nos contributos da investigação em didáctica das ciências para a melhoria do ensino das ciências. Ora bem, aquilo que pretendo aqui salientar é a importância de as instituições formadoras de professores serem instituições de investigação sobre a formação. E realmente faz-se formação de professores para o ensino das ciências em instituições que não têm práticas consolidadas de investigação sobre o ensino das ciências. E, portanto, praticam-se determinados programas de formação com a ideia de que se os professores souberem ciência, saberão como ensinar ciências. Ora o problema do ensino das ciências no 1.º ciclo não se resolve recorrendo a professores do 2.º ou do 3.º ciclo de ciências. O que é preciso na didáctica das ciências do 1.º ciclo é muito mais do que saber os conceitos de flutuação ou de densidade relativa do objecto que se está a testar relativamente ao líquido. Porque, de facto, as substâncias ou os materiais não se podem diferenciar ou distinguir como os que são do tipo da batata ou da maçã, tudo depende do líquido em que forem colocados.
No que respeita a esta importância da investigação para o ensino das ciências, gostaria de dizer que os programas de pós-graduação que envolvem os professores do 1.º ciclo em investigação têm dado resultados excelentes. Estamos, de facto, com a primeira edição do mestrado em educação e ciências na Universidade de Aveiro, as teses submetidas e os exames vão começar dentro em breve e, por aquilo que já é o testemunho e aquilo que temos recolhido nas escolas do 1.º ciclo, estes professores do 1.º ciclo que fazem uma pós-graduação na educação em ciências para esse nível de estudo, serão, porventura, pólos dinamizadores em todas as instituições por onde vierem a passar. Alguns deles são muito jovens, e tenho muita confiança que no futuro haverá, temos que dar tempo, mas haverá resultados desse investimento.
Muito obrigada