Educação e Família no Quadro Constitucional Português
Presidente da Mesa – Rui Alarcão
CONFERÊNCIA
Rui Alarcão ∗
Exmas. Autoridades, senhores Conselheiros, ilustres convidados, senhor Prof. Jorge Miranda, minhas senhores e meus senhores, vamos dar início a esta primeira Conferência sob o título A Família e a Educação no Quadro Constitucional Português.
Tenho muito gosto em participar neste seminário, sendo-me especialmente grato ter aqui, a meu lado, o Prof. Jorge Miranda. Todos sabemos que é um eminente professor e investigador universitário, aliás, um dos maiores constitucionalistas portugueses, conhecido aquém e além fronteiras, nomeadamente no âmbito da lusofonia, e em especial no Brasil, onde é um dos constitucionalistas mais lidos, mais escutados e mais influentes. Desempenha funções directivas. É Doutor honoris causa por várias universidades. Foi Deputado à Assembleia Constituinte, teve um papel relevantíssimo na elaboração da Constituição e depois na sua interpretação e aplicação. Também gostava de destacar a sua intervenção como cidadão, a sua participação, a sua acção de cidadania activa, nomeadamente com participações na comunicação social, na rádio, na TV, nos jornais, esclarecendo com a sua autoridade questões de grande impacto na opinião pública.
A temática que se vai aqui abordar hoje, é de grande importância e de grande actualidade, porque uma boa parte do futuro depende da família, da educação e da relação entre a família e a educação. Por sua vez, a família e a educação dependem, em certa medida, do direito, e se o direito exprime determinadas exigências da sociedade, ele tem também um papel conformador da sociedade, e há, portanto, uma interacção entre a sociedade e o direito. O direito a exprimir ou organizar exigências na sociedade, mas ele próprio a ter uma função modeladora ou conformadora da sociedade. Julgo que não devemos exagerar a importância do direito, apesar do Prof. Jorge Miranda e eu sermos juristas. Hoje o direito realmente está em crise: está tudo em crise, mal parecia que o direito não estivesse em crise. E essa crise do direito tem a ver, nomeadamente, com uma mudança que se está
∗ Conselho Nacional de Educação
processando, que pode avançar, pode estabilizar, pode regredir, não sei, mas é uma mudança que se está a verificar, no sentido de uma passagem de uma sociedade impositiva para uma sociedade contratualizada ou consensualizada. Que, por sua vez, tem muito a ver com a própria evolução democrática, nomeadamente com o desenvolvimento de uma democracia participativa. E esta passagem, muitas vezes uma passagem incipiente, com progresso, com regresso e com muitas indecisões, de uma sociedade impositiva para uma sociedade, de alguma forma, contratualizada, envolve muitas vezes uma recuo do próprio direito estadual, e o aparecimento e o desenvolvimento do que se chama um direito negociado, com uma especial relevância de paradigmas contratuais.
Isto não quer dizer que o direito não seja importante e mesmo decisivo, só significa que deve haver alguma compreensão disto, alguma relativização do direito; não é tanto do direito, mas uma relativização das leis, sobretudo num país em que há, de facto, uma inflação legislativa evidente. A própria Constituição tem sido porventura revista vezes de mais, e é importante que nós tenhamos a consciência disso. Fala-se realmente na necessidade de uma reinvenção do direito – não vou para coisas realmente tão ambiciosas, mas há a necessidade de um novo direito, de uma renovação do direito, e aqui tem um papel fundamental o Direito Constitucional. E, por isso, julgo inteiramente adequado abordar o problema da família e da educação no quadro constitucional português. O Prof. Jorge Miranda, com quem participei na Comissão Constitucional, que antecedeu o Tribunal Constitucional, é um reputado especialista nesta área. Tenho estudado um pouco, também, este ramo do Direito, mas, devo reconhecê-lo, sem a mesma profundidade e desenvolvimento. Nestas circunstâncias, é com muito gosto que concedo a palavra, de imediato, ao senhor Prof. Jorge Miranda.
Jorge Miranda ∗
1.2. Aspectos comuns: a) Obrigações do Estado; b) Admissibilidade de escolas não estatais.
A partir da Carta Constitucional, instrução primária gratuita.
1.3. Aspectos de diferenciação: a) Normas avulsas muito genéricas nas Constituições liberais e normas mais densas, em divisões sistemáticas próprias, nas Constituições de 1933 e de 1976; b) Específica consideração da família nestas duas últimas Constituições;
c) A inserção, na Constituição de 1976, no Estado de Direito democrático.
2.1. O sistema constitucional de direitos fundamentais: a) A distinção e a complementaridade de direitos, liberdades e garantias e direitos económicos, sociais e culturais; b) O regime de uma e outra categoria de direitos e os princípios comuns;
c) Liberdade de educação (maxime art. 43.º) e direito à educação (art.os 73.º e segs.).
a) As garantias institucionais da família, do casamento, do poder paternal e da adopção;
1 Texto extraído da gravação
∗ Universidade de Lisboa
b) Os direitos, liberdades e garantias atinentes à família (art.º 36.º);
c) Os direitos económicos, sociais e culturais atinentes à família (art.os 67.º, 68.º e 69.º).
a) Art.º 36.º, n.º 3 – “Os cônjuges têm iguais direitos e deveres quanto à… educação dos filhos”;
Art.º 36.º, n.º 5 – “Os pais têm o direito de educação dos filhos”; Art.º 36, n.º 6 – “Os filhos não podem ser separados dos pais, salvo quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles e sempre mediante decisão judicial”;
Art.º 67.º – “Incumbe, designadamente, ao Estado, para a protecção da família: a) Cooperar com os pais na educação dos filhos”;
Art.º 68.º – “Os pais e as mães têm direito à protecção da sociedade e do Estado na realização da sua insubstituível acção em relação aos filhos, nomeadamente quanto à sua educação”;
Art.º 77.º, n.º 2 – “A lei regula as formas de participação das associações de pais,… na definição da política de ensino”;
b) Art.º 26.º, n.º 3 da Declaração Universal dos Direitos do Homem – “Aos pais pertence a prioridade do direito de escolher o género de educação a dar aos filhos”;
c) O poder paternal como direito, liberdade e garantia, e não (ou não apenas) como poder funcional.
3.1. A liberdade de educação como liberdade complexa: a) Dos pais, das confissões religiosas (art.º 41.º), das instituições
culturais e científicas; b) Dos professores e dos alunos.
3.2. A liberdade de educação e a escola: liberdade de escola e liberdade na escola;
3.3. A liberdade de escola: a) Liberdade de acesso à escola; b) Liberdade de escolha de escola conforme com o projecto
educativo dos pais ou, a partir de certa idade, dos próprios; c) Liberdade de escolha, a partir de certa idade, de curso ou ramo de
saber; d) Liberdade de criação de escolas diferentes das estatais; e) A escola pública como garantia de liberdade em relação a escolas
identificadas com projectos educativos, confessionais ou religiosos.
3.4. A liberdade na escola: a) A liberdade de ensinar dos professores; b) A liberdade de aprender dos alunos; c) A liberdade de ensinar e de aprender matérias de religião e
filosofia e a regra da não confessionalidade das escolas públicas; d) A participação na gestão das escolas – por professores e por alunos ou seus pais.
4.2. A compatibilização da rede pública de escolas com as escolas não estatais: interdependência e não sobreposição;
4.3. O estabelecimento progressivo da gratuitidade de todos os graus de ensino [art.º 74.º, n.º 2, alínea e)] e o seu sentido: a) Sentido da gratuitidade – simples ausência de taxas de inscrição e frequência ou gratuitidade das prestações?
b) Gratuitidade necessária no ensino básico; c) Adequação às condições económicas e sociais nos demais graus.
4.4. A extensão às escolas não estatais e os seus critérios: a) A (difícil) distinção entre escolas, produto de mera iniciativa económica, das que traduzem iniciativa cultural e possuem um projecto educativo próprio – donde distinção relevante quanto a umas e outras escolas.
b) O requisito da qualidade, avaliado através da fiscalização (art.º 75.º, n.º 2).
4.5. A efectivação da gratuitidade no ensino não estatal: a) Os subsídios directos às escolas; b) Os subsídios directos às famílias e aos alunos; c) Os benefícios fiscais.
1. Foi com muito gosto que aceitei o convite do meu querido amigo Prof. Manuel Porto, para vir participar neste seminário, que tem como tema esta matéria fundamental da relação entre a família e a educação. E agradeço muito as palavras que o Prof. Rui Alarcão me dirigiu. No essencial, concordo com aquilo que o Prof. Rui Alarcão acaba de referir acerca do Direito. Talvez não falasse de uma mudança de paradigma – de um Direito impositivo para um Direito contratualizado; talvez dissesse antes uma mudança na própria sociedade, que leva a que o Direito desempenhe funções diferentes consoante as várias áreas. De resto, no tocante à Constituição e às leis nós exigimos mais do que aquilo que elas podem dar. É uma visão muito jurisdicizada, um certo exacerbamento daquilo que se pede ao Direito, e uma concepção da sociedade apenas na base do direito positivo, esquecendo-se que há uma realidade que está para além do Direito, embora seja também necessariamente conformada pelo Direito. Isso é claramente o que acontece no campo da Constituição, chegando-se ao ponto de nesta última revisão Constitucional até se ter introduzido uma norma que é a repetição de outra norma que já lá estava (estava já na Constituição a regra da necessidade de conciliação entre a vida familiar e a vida profissional, no art.º 59, e agora vem-se dizer exactamente o mesmo no art.º 67!). Ora, mais e mais preceitos constitucionais e legais, em vez de reforçarem a efectividade do Direito, diminuem-na. Assim como a multiplicação de leis não leva a que as pessoas cumpram mais as leis, também a multiplicação de normas constitucionais não significa, necessariamente, que os seus imperativos venham a ser acatados pelo legislador, pela administração pública, e até, às vezes, pelos tribunais.
princípio do sufrágio universal, mas também estabelecia que quem estivesse com dezassete anos na altura da aprovação da Constituição e que chegando aos vinte e cinco não soubesse ler nem escrever, não teria direito a sufrágio, não teria direito a voto. Era um incitamento indirecto à alfabetização.
E também se dizia que haveria escolas em todos os lugares do reino onde fosse necessário, porque essa Constituição, que se deveria aplicar ao Brasil, consignava que haveria no Brasil estabelecimentos destinados à educação dos índios. As Constituições seguintes foram todas nesta linha, e logo a Carta Constitucional, quatro anos depois, veio estabelecer que a instrução primária seria gratuita. Não conheço nenhuma Constituição Europeia dessa época que tivesse ido tão longe ao estabelecer o princípio da gratuitidade da instrução primária.
Todas as Constituições seguintes dedicaram um maior ou menor relevo à educação, com dois aspectos comuns: por um lado, salientando as obrigações do Estado, salientando o papel que o Estado deveria ter no domínio da educação, mas, por outro lado, não estabelecendo uma regra de exclusivismo estatal de criação de escolas.
Em todas as constituições, desde 1822 até à de 1976, reconhecia-se a possibilidade de haver escolas não estatais, embora em termos bastante diferentes. Portanto, esse dualismo escolas estatais, escolas não estatais, vem desde 1822. Mas também há aspectos de diferença.
No plano sistemático, as Constituições liberais, as da monarquia constitucional e a de 1911, dedicam à educação normas avulsas e muito genéricas e, pelo contrário, a Constituição de 1933 e a de 1976, essas procuram tratar mais sistemática e ordenadamente a matéria da educação. Por outro lado, as Constituições liberais ignoram completamente as famílias. São as Constituições de 1933 e 1976 que vão consagrar expressamente a existência das famílias e estabelecer garantias institucionais das famílias.
Finalmente, em relação à Constituição de 1976, é necessário pensar a matéria da educação e a matéria da família, no âmbito de um sistema de direitos fundamentais que não tem paralelo com os sistemas de direitos fundamentais das Constituições anteriores. O âmbito do sistema de direitos fundamentais é extremamente alargado e generoso, inserido no quadro da Declaração Universal dos Direitos do Homem, com uma cláusula aberta a novos direitos, e com regras muito rigorosas de garantia e de efectivação dos direitos. Isto faz toda a diferença relativamente às Constituições anteriores.
Muito mais importante em matéria de direitos fundamentais, do que um longo catálogo, é como se sabe a existência de regras rigorosas que imponham ao Estado determinadas obrigações e que dêem às pessoas a possibilidade de defenderem os seus direitos, se necessário por via jurisdicional.
A educação aparece na Constituição de 1976, não num título comum como sucedia na Constituição de 1933, ou como sucede, por exemplo, na Constituição brasileira. A educação aparece primeiro sob a veste da liberdade, e no quadro geral dos direitos, liberdades e garantias, e aparece depois sob a veste dos direitos sociais, como o direito à educação e no âmbito de todo um conjunto de direitos económicos, sociais e culturais. Isto não significa que não haja uma comunicação entre os direitos de liberdade e os direitos sociais, entre a liberdade da educação e o direito à educação.
Ou seja: a Constituição trata primeiro da liberdade da educação e depois do direito à educação. O artigo fundamental sobre liberdade de educação, é o art.º 43, com a epígrafe da liberdade de aprender e ensinar. O artigo mais importante sobre o direito à educação é o art.º 73, em que se fala no direito à educação, complementado pelos art.os 74, 75, 76 e 77.
6. Passando à família, ela igualmente aparece sob as duas perspectivas: aparece sob a perspectiva dos direitos, liberdades e garantias, e aparece noutra perspectiva dos direitos económicos, sociais e culturais.
Sob a perspectiva dos direitos, liberdades e garantias é o art.º 36 aquele que avulta; na perspectiva dos direitos económicos, sociais e culturais é o art.º 67. No art.º 36 aparecem alguns direitos fundamentais: o direito de contrair casamento, constituir família. Aparecem depois garantias institucionais: a garantia institucional do casamento, do divórcio, da adopção, do poder paternal. E como direito de liberdade e garantia básico, o direito de não poderem os filhos serem separados dos pais, a não ser mediante decisão judicial, quando não cumprirem os seus direitos fundamentais em relação a eles.
No art.º 67 aparecem incumbências do Estado relativamente à família. Mas não é só nesse art.º 67 que aparecem incumbências do Estado em relação à família. Elas aparecem também no art.º 68 sobre filiação em geral, sendo que todos os artigos que depois surgem sobre várias categorias etárias, crianças, jovens, idosos, pessoas com deficiência, também têm directa ou indirectamente a ver com a família. E o mesmo acontece, de resto, com alguns dos direitos dos trabalhadores que aparecem no art.º 59.
Portanto, se nós fôssemos traçar ou fazer um tratamento sistemático da família na Constituição, não poderíamos esgotar a nossa visão nos art.os 36 e 67, mas esses são os artigos básicos que interessaria ter em conta.
Então, e muito especificamente, a Constituição estabelece direitos e deveres dos pais e das famílias no domínio da educação. Em primeiro lugar, no art.º 36, n.º 3, que diz: “os cônjuges têm iguais direitos e deveres quanto à capacidade cívica e política, e à manutenção e educação dos filhos”. O que é consignado é o princípio de igualdade dos pais relativamente à educação dos filhos, a superação das desigualdades que havia ainda, espantosamente, no quadro civil de 1966, em que se atribuía, digamos, o essencial do poder paternal em matéria de educação ao pai, em detrimento da mãe. Isso desapareceu, foi o que ficou institucionalizado por esta norma constitucional. De resto e curiosamente, já na Constituição de 1933, se estabelecia a ideia da igualdade de ambos os cônjuges em matéria de educação dos filhos. Portanto, o próprio Código Civil de 1966, era inconstitucional à face da própria Constituição de 1933.
A seguir, no n.º 5, estabelece-se que os pais têm o direito e dever de educação e manutenção dos filhos. Pode ser algo repetitivo em relação ao n.º 3, porque no n.º 3 quer-se essencialmente afirmar um direito de igualdade. No n.º 5, quer-se afirmar um direito que é, de certa maneira, um direito contra o Estado ou um direito contra outras entidades públicas. Isso permite considerar o poder paternal, não apenas como um mero poder funcional, como mais tradicionalmente é considerado no domínio do direito da família, mas também como um verdadeiro direito subjectivo. O poder paternal não está apenas ao serviço dos filhos, é também uma forma de realização da própria personalidade dos pais.
E finalmente, a garantia que já referi, consignada no art.º 36, n.º 6, a de os filhos não poderem ser separados dos pais, salvo quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles, e sempre mediante decisão judicial.
7. Fala-se aqui em deveres fundamentais para com eles. Quais são os deveres fundamentais dos pais em relação a eles? Em geral, o dever de educação. Especificamente, na Constituição, o único dever dos pais é o dever de escolaridade, que é afirmado já mais à frente, não em sede deste artigo, mas sim no art.º 74, acerca do ensino: incumbe ao Estado assegurar o ensino básico universal, obrigatório e gratuito. E, portanto, há um dever dos pais de levar os filhos à escola, de ministrar educação básica aos filhos, a que corresponde a incumbência dos pais de assegurar, de salvaguardar, de garantir, de criar condições para que esse dever possa ser assegurado.
Aqui fala-se em ensino básico, universal, obrigatório e gratuito. Mas a tendência que tem havido na nossa legislação, e que ao que parece, vai ser agora confirmada pela nova Lei de Bases da Educação, é para um alargamento da escolaridade obrigatória. E já houve quem tivesse dito que seria inconstitucional alargar a escolaridade para além do ensino básico, uma vez que na Constituição há apenas a obrigação de escolaridade relativamente ao ensino básico. Mas isso seria uma interpretação profundamente errónea, porque este dever de escolaridade que incumbe aos pais, é um dever que está conexo agora com o poder funcional de estar ao serviço de realização do poder paternal em favor dos filhos, e que está ligado ao direito à educação, portanto, já um pouco diferente da liberdade de educação. Uma coisa é um dever no âmbito de qualquer restrição pessoal, como, por exemplo, o dever de pagar impostos ou o dever de serviço militar, em que há uma restrição da própria liberdade pessoal, ou do património das pessoas, outra coisa é um dever, como o dever de educação, ou o dever de defesa da saúde, que também constam na Constituição, ou o dever de defesa do ambiente, que se situam num plano completamente diferente.
8. Depois, no art.º 67, n.º 2, diz-se que incumbe ao Estado cooperar com os pais na educação dos filhos. Cooperar com os pais na educação dos filhos, significa que não é o Estado que assume a educação dos filhos: quem assume a educação dos filhos são os pais, o Estado coopera com os pais nessa educação.
E, do mesmo modo, no art.º 68, diz-se: “os pais e as mães têm direito à protecção da sociedade e do Estado, na realização da sua insubstituível acção em relação aos filhos, nomeadamente quanto à sua educação”.
Portanto, temos um conjunto de normas na Constituição que são extremamente claras. E essas normas são reforçadas pelo art.º 26, n.º 3, da Declaração Universal dos Direitos do Homem, que é critério de interpretação da Constituição, segundo o art.º 16, n.º 2, da Constituição. O art.º 26, n.º 3, diz o seguinte: “aos pais pertence a prioridade do direito de escolher o género de educação a dar aos filhos”. Bom! Mas isto são princípios de carácter muito genérico.
9. Passemos agora à liberdade de educação como liberdade de escola. A educação não se faz só na escola: já foi aqui dito há pouco na cerimónia de abertura, que uma coisa é a educação, outra coisa é a educação escolar. São realidades diferentes. Quando a Constituição fala em educação, em geral, ou em direitos e deveres dos pais em relação à educação, está a tomar a educação num sentido mais amplo, mas depois há a educação escolar.
E na nossa época não é possível pensarmos em educação, sem essa educação ser também uma educação escolar. Se a educação não é apenas a educação escolar, na nossa época foi-o e já o é desde há séculos: a educação tem que ter sempre uma componente escolar. Portanto, para lá dos aspectos gerais sobre os direitos e os deveres dos pais em matéria de educação, ou direitos e deveres das famílias em matéria de educação, há depois a conexão a estabelecer com a escola, com a educação escolar.
E podemos dizer que da Constituição também resultam, do art.º 43, e depois dos art.os 73 e seguintes, simultânea e complementarmemte, a liberdade de educação em matéria de escola, e depois um direito à educação através da escola. Liberdade da educação através da escola, e o direito à educação através da escola. Esta liberdade de educação em matéria de escola pode ser expressa numa forma mais sintética, a liberdade de escola. E esta liberdade de escola, por sua vez, pode ser desdobrada – em liberdade de escola, no sentido mais restrito, e em liberdade na escola. Há essas duas componentes fundamentais. Liberdade de escola e liberdade na escola.
10. A liberdade de escola significa várias coisas: significa, em primeiro lugar, a liberdade de acesso à escola. Ninguém pode ser objecto de qualquer tipo de discriminação que impeça de aceder à escola. Quaisquer discriminações por razões raciais, religiosas, etc., são absolutamente vedadas: todos têm direito de aceder à escola. Depois, a liberdade de escola significa a liberdade de escolha da escola, conforme com o projecto educativo dos pais e, a partir de certa idade, dos próprios. Depois, a liberdade de escola significa a liberdade de escolher, a partir de certa idade,
o curso ou ramo de saber que se pretenda frequentar ou obter. E, significa, naturalmente, a liberdade de criação de escolas diferentes das escolas estatais.
11. Mas esta liberdade de criação de escolas diferentes das escolas estatais, não significa que o Estado não possa e não deva criar escolas públicas; pelo contrário, há igualmente uma obrigação do Estado de criação de escolas públicas, ainda como garantia da própria liberdade de escola. Porquê? Porque a liberdade de escola no sentido de liberdade de criação de escolas está ligada a determinados projectos educativos, que aparecem geralmente, por seu turno, conexos com projectos confessionais ou ideológicos, mas basicamente confessionais. Ora é necessário garantir àqueles que não se identificam com nenhum desses projectos confessionais,
o acesso a uma escola pública que seja neutra, relativamente a qualquer tipo de projecto confessional, ou igualmente qualquer tipo de projecto ideológico. Portanto, a liberdade de escola postula, simultaneamente, o direito de criação de escolas diferentes das escolas estatais, mas também o direito e a obrigação do Estado de criar escolas públicas.
Toda a dificuldade, naturalmente, está em articular os dois princípios e articular os dois sistemas ou subsistemas. Mas não haverá verdadeira liberdade de escola num sistema em que não haja a possibilidade de escolas não estatais, assim como não haverá verdadeira liberdade de escola num sistema em que não exista escola pública. E é nesse sentido que vai a nossa Constituição como facilmente pode ver-se, conjugando o art.º 43 com o art.º 75. No art.º 43, no n.º 4, diz-se: “é garantido o direito de criação de escolas particulares e cooperativas”, mas depois no art.º 75, diz-se: “o Estado criará uma rede de escolas públicas de ensino que cubra as necessidades de toda a população”. Assim como se diz que: “o Estado reconhece e fiscaliza o ensino particular e cooperativo nos termos da lei”. O Estado garante o direito de criação de escolas particulares e cooperativas.
12. Mais do que isso, mais do que a garantia dessa existência, reconhece-as, o que significa que aquela diferenciação que antes havia entre ensino oficial e ensino não oficial, hoje não existe, todas as escolas particulares e cooperativas, desde que reconhecidas, são também escolas oficiais. É evidente que são dois momentos diferentes: um momento é o da criação da escola, outro momento o de reconhecimento do Estado. O reconhecimento do Estado é indispensável, porque criar uma escola não é propriamente a mesma coisa que, com o devido respeito, criar uma lavandaria: há o interesse público que tem de estar presente, há a verificação de requisitos pedagógicos, requisitos de instalações, de equipamento, etc., que o Estado tem de verificar se existem, e isso em grau cada vez mais elevado, à medida que se vai subindo nos escalões do ensino.
Em matéria de universidade, deve haver requisitos muito mais rigorosos, naturalmente, do que em matéria de um ensino básico ou secundário. Portanto, há este direito de criação e um direito ao reconhecimento, mas há também um dever do Estado de fiscalizar, de intervir, de verificar as condições de reconhecimento, em nome do interesse público, em nome também, ao fim e ao resto, dos próprios direitos das crianças e dos jovens que vão às escolas, mas uma vez reconhecida uma escola, então os seus graus, os seus diplomas, estão em paridade com os graus e os diplomas atribuídos pelas escolas estatais.
As escolas públicas serão não confessionais, o que significa que não estão identificadas com nenhum projecto confessional, educativo ou ideológico; as escolas particulares essas podem ser confessionais. Podem, poderão ser e naturalmente serão.
13. O problema aqui está em que muitas das escolas particulares não obedecem a critérios de projecto educativo ou pedagógico, mas sim a projectos puramente comerciais. E, portanto, penso que deveria aí haver também uma clara distinção entre o que é uma escola particular com um projecto pedagógico determinado, e uma escola particular que obedece apenas a um critério de lucro, a um critério puramente económico. A liberdade de criação de escolas não deve ser vista como uma manifestação da liberdade de iniciativa económica, embora não possa deixar de ter também factores económicos em consideração; a liberdade de criação de escolas deve ser entendida como uma manifestação de uma liberdade de iniciativa cultural.
E o Estado, na legislação, deveria distinguir esses dois aspectos, não pode tratar igualmente escolas de tipo mercantil. Isso verifica-se muito, particularmente nas universidades privadas que temos em Portugal, quase todas são universidades mercantis. Outra coisa é a escola que obedece a um projecto educativo e pedagógico, como é o caso, por exemplo, da Universidade Católica. São situações completamente diferentes, portanto, o legislador deveria distinguir e, tanto quanto sei, até agora não tem distinguido.
14. Depois, temos a liberdade na escola. A liberdade na escola significa a liberdade de ensino dos professores, a liberdade de aprender dos alunos que, naturalmente, vai sendo densificada também à medida que vão tendo maior desenvolvimento intelectual e que vão subindo nos graus do ensino. A liberdade de ensinar e aprender matérias de religião e filosofia e a regra da não confessionalidade das escolas públicas, tem muito a ver com esta questão.
Há um ponto que de resto está decidido pelo Tribunal Constitucional já há vários anos, e que é este: o facto de as escolas públicas não serem confessionais, não significa que nelas não possa entrar o ensino de religião e moral. Porque, o não entrar o ensino de religião e moral, acabaria por ser uma posição anti-confessional e anti-religiosa. E, portanto, a escola pública, enquanto tal, não professa nenhuma religião, nenhuma confissão e nenhuma ideologia, mas não pode impedir que o ensino de uma religião ou de uma filosofia nela possa ser ministrado, embora através ou a partir das próprias confissões religiosas.
E é esse o regime que hoje temos em Portugal e que acaba agora até de ser consagrado, quer pela lei da liberdade religiosa, quer pela recentíssima Concordata entre Portugal e a Santa Sé, distinguindo o plano da intervenção do Estado e o plano da intervenção das próprias confissões religiosas. Isso também é liberdade dentro da escola.
E, finalmente, a liberdade na escola envolve o direito de participação na gestão das escolas. A participação na gestão das escolas é ainda uma manifestação da liberdade dentro da escola: participação por professores, por alunos, pelas famílias, naturalmente em termos diferentes, consoante os graus de ensino e consoante a natureza institucional das várias escolas. Mas
o princípio da participação democrática na gestão das escolas que consta do art.º 77, não é, ao contrário do que por vezes se tem entendido, um princípio só para as escolas públicas, é um princípio também para as escolas não públicas.
15. Por outro lado, é importante ver uma norma que também tem feito correr muitos rios de tinta, que consta deste mesmo art.º 74, n.º 2, que é a obrigação do Estado de estabelecer progressivamente a gratuidade de todos os graus de ensino.
Esta regra tem sido entendida também, até agora, como valendo só para as escolas públicas e não para as escolas privadas, quando a Constituição não distingue. Justamente, a Constituição garante o direito de existência de escolas particulares e cooperativas, reconhece, uma vez verificada certas condições, que haja escolas particulares e cooperativas, com a atribuição de graus e diplomas de valor igual aos graus e diplomas das escolas públicas. Se o princípio da igualdade exige um tratamento por igual de todos os cidadãos, se a liberdade de escola significa a possibilidade de opção por escolas diferentes das escolas estatais, então o princípio do estabelecimento da progressiva gratuitidade, é um princípio que deve valer também para as escolas não públicas.
Em todo o caso, esta ideia de gratuitidade deve ser entendida não no sentido em que muitas vezes é entendida, por assim dizer, literal, de se querer chegar a uma situação de gratuitidade absoluta, de não haver pagamento de taxas, matrículas, propinas, etc. A gratuitidade tem de ser entendida, como também, de certa maneira, já o Tribunal Constitucional entendeu, e como resulta do confronto, por exemplo, com as normas sobre o Serviço Nacional de Saúde ou sobre o acesso à justiça, no sentido de aqueles que não podem pagar, não terem de pagar; e aqueles que podem pagar, pagarem na medida das suas possibilidades, deixando sempre, em todo o caso, uma margem de pagamento para o Estado, na medida em que o Estado é responsável pelo desenvolvimento da educação. Portanto, tem de haver aqui uma adequação da gratuitidade, em razão das capacidades económicas das pessoas, e também, naturalmente, em razão dos vários tipos de escolas. E, se em relação ao ensino básico a Constituição impõe já a gratuitidade na alínea a) deste n.º 2 do art.º 74, assegurar o ensino básico obrigatório e gratuito, já noutra alínea, a gratuitidade é uma meta a atingir, a adequar, como digo, às condições económicas e sociais e aos tipos de escola.
O problema grave é como estabelecer esta progressiva gratuitidade, mesmo nestes termos, relativamente às escolas particulares e cooperativas. Porque é evidente que há uma enorme desigualdade e até uma grande hipocrisia, quando se permite a criação de escolas particulares e cooperativas, e se permite que elas tenham taxas e margens de lucro extremamente grandes, e quando, ao mesmo tempo, nas escolas públicas não se paga nada e até há um certo tipo de auxílios e apoios. Tem de se encontrar uma articulação que permita que também as pessoas livremente possam escolher as escolas privadas e cooperativas em condições iguais àquelas em que escolhem as escolas públicas.
É um problema extremamente difícil, que tem sido discutido em muitíssimos países e também em Portugal. A meu ver, o melhor sistema deveria ser o do subsídio directo do Estado às escolas e não o chamado sistema do cheque-ensino. Subsídio directo do Estado às escolas, com verificação rigorosa das suas condições de funcionamento, das suas condições pedagógicas, de instalações e equipamento, e depois, naturalmente, com prestação de contas. Depois, o estabelecimento por parte do Estado de limites de taxas ou de propinas a pagar pelos alunos, deixando, naturalmente, uma certa margem de manobra às escolas. Aliás, isso hoje também já se verifica nas próprias universidades públicas. Mas o sistema, a meu ver, mais indicado, é o Estado subsidiar directamente as escolas privadas. Desde que as escolas privadas reconhecidas existam, o Estado tem obrigação de as subsidiar. Este sistema, tanto quanto eu sei, é adoptado na Bélgica e na Holanda, onde existe essa liberdade de escolha da escola.
O sistema do cheque-ensino ou o sistema de pagamento directo aos pais ou estudantes, parece-me ter bastantes deficiências, e tenho as maiores dúvidas de que na sociedade portuguesa, com os atrasos estruturais que se conhecem, isso viesse a ter resultados positivos. Mas este é um ponto em debate, sobre o qual, naturalmente, enfim, outras pessoas poderão ter opiniões diferentes; não tenho uma opinião absolutamente firme nesta matéria, mas parece-me ser o sistema mais adequado.
16. Tudo isto ainda ligado à avaliação: não basta o reconhecimento a priori, é necessária a avaliação. Avaliação de todas as escolas, públicas e privadas, e a avaliação de todos os graus. Infelizmente, é coisa que em Portugal praticamente não se tem feito. Mesmo a nível universitário, só agora é que se estão a fazer, pela segunda vez, esforços de avaliação e inspecção, porque também é necessário que o Ministério da Educação ou o Ministério da Ciência, Inovação e Ensino Superior tenham instrumentos de inspecção rigorosos para evitar os abusos que se conhecem.
Eu confesso que só conheço directamente o ensino superior, e no ensino superior, sei que há imensos abusos, um enorme laxismo por parte do Estado, com resultados altamente danosos para a cultura nacional, e com gravíssimo prejuízo para os próprios estudantes. Portanto, terá de haver um primeiro momento, em relação às escolas particulares, o direito de criação, a possibilidade de criação, a expressão de uma iniciativa cultural e pedagógica, depois o reconhecimento, e por último, uma avaliação. E essa avaliação deverá ser feita em termos absolutamente idênticos àqueles em que é feita a avaliação nas escolas públicas.
Debate
Rui Alarcão – Muito obrigado, senhor Prof. Jorge Miranda, que fez, como esperávamos, uma excelente intervenção neste domínio. Percorreu, aliás, uma parte muito extensa da matéria e, portanto, teve de fazê-lo de uma maneira muito sintética, mas, mesmo assim, muito clara.
Gostaria de salientar, muito brevemente, que o Prof. Jorge Miranda confirmou, de alguma maneira, aquilo que eu tinha dito naquele breve apontamento inicial, relativamente ao que se pode esperar do Direito Constitucional. De facto, os juristas têm particular obrigação de chamar a atenção dos não juristas para que não se peça, ao Direito e às leis, aquilo que não podem dar. Temos em muitas áreas leis magníficas, e depois a realidade não está de acordo com isso. Costumo dizer que, às vezes, uma lei má, bem aplicada, é boa, e uma lei boa, mal aplicada, é má. Isto não é uma verdade pós-moderna. De facto, os nossos velhos praxistas diziam: a virtude das leis está na execução delas. E, portanto, foi isto que o Prof. Jorge Miranda salientou: por melhores que sejam as leis, nem tudo fica com elas resolvido. É claro que é bom que tenhamos boas leis e melhor que sejam óptimas, mas, de facto, há que ter aquela consciência cívica e cultural a que o Prof. Jorge Miranda aludiu. E isto não é utopismo, porque passa por aí o verdadeiro caminho, se realmente queremos vencer.
Vamos iniciar o período de debate. Darei a palavra aos senhores participantes que desejem formular perguntas.
António Ponces de Carvalho –A questão que gostaria de pôr era a seguinte: quando falamos de uma relação entre a escola e a família, para que exista relação e estamos a falar de uma relação profícua, é necessário que os intervenientes se conheçam, e é necessário que os intervenientes partilhem um conjunto de ideias e de valores. Ora o que acontece na realidade portuguesa, quer por força das leis, quer por força da prática, é que os diversos intervenientes, escola e a família, não se conhecem. Basta vermos de quantas escolas verdadeiramente se conhece, na realidade, o projecto educativo, o ideário do centro educativo, o projecto pedagógico, científico, cultural, se quisermos, o projecto de vida que essa escola oferece aos seus estudantes. Portanto, quando falamos e falámos ao fim deste painel, na hipótese de escolha, a primeira questão que levanto é: como é que uma família pode escolher aquilo que não conhece? Como é que uma família se pode relacionar com o desconhecido?
Por outro lado, a própria escola também não conhece as famílias. As escolas recebem os alunos, não por estes alunos se identificarem ou não com
o projecto educativo, cultural, mas, simplesmente, porque vivem numa determinada área próxima da escola. Todos nós sabemos que a nível do ensino secundário, por exemplo, quando uma família quer colocar os seus filhos numa determinada escola, por intuir que se aproxima melhor do projecto de vida que pretende para os seus adolescentes, tem que mudar a morada ou dar uma morada falsa para conseguir que esses jovens frequentem determinada escola.
Por outro lado ainda, como é que é possível falarmos num projecto educativo na escola, quando, sistematicamente, de ano a ano, grande parte dos docentes dessa escola se altera? Chegamos a Maio e os professores já estão a pensar onde é que estarão no próximo ano. Como é que é possível, através de um concurso nacional, em que os professores são colocados porque concorrem a um determinado sítio e são colocados pelo computador, que nem sempre funciona bem, conhecerem o projecto educativo dessa escola? O professor concorre a uma escola mas a única coisa que sabe é o seu nome e a sua localização e, por conseguinte, aquilo que conhece do projecto educativo é a sua área geográfica. Portanto, isto é completamente um contra-senso, estamos a pedir uma relação impossível: uma relação em que a família não conhece a escola, a escola não conhece a família, nem a escola tem possibilidade de ter uma identidade, porque essa identidade passa a vida a modificar-se.
E tal não se resolve pelo facto de estar consignado na lei que os pais participam na construção do projecto educativo, até porque sabemos que o projecto educativo formal não muda todos os anos, e que, por outro lado, é constituído se calhar por alguma comissão de pais ou por um grupo limitado de pais – resta saber se os outros se identificam ou não. E, portanto, o que estamos a ver na realidade é uma relação, que, à partida, não é uma relação, mas um divórcio, para já não falar da questão de alguma desconfiança que existe entre a família e a escola e entre a escola e a família.
Quando se alude a esta relação, muitas vezes vemos que a relação existe no papel. Aliás, é um exemplo típico português – parece que ao limitarmos a pôr as coisas no papel ficamos todos satisfeitos a pensar que está feito. Ela existe realmente nos documentos, muitas vezes até da própria escola, mas depois na prática, quer da escola, quer da família, não se concretiza. Repare-se quantas escolas têm a tradição de realizar reuniões em que se promova efectivamente essa relação. Existem reuniões de pais, são formais, escola de um lado, pais do outro, existem encontros, professores de um lado, pais do outro. Agora, medidas que promovam essa relação, relações informais, jantares, festas, que possam aproximar a escola da sua comunidade educativa, dos pais, são na verdade muito raras.
Fernando Adão da Fonseca – Não fui aluno do senhor Prof. Jorge Miranda, mas é sempre com grande admiração que também o oiço.
Tenho apenas duas perguntas: se percebi bem o art.º 75.º não diz que, uma vez criada uma escola pública, o Estado tem o direito de obrigar as pessoas a irem para aquela escola pública, naquele local; deve permitir que possam escolher outra escola pública noutro local. Esta é a primeira questão que desejava colocar.
A segunda pergunta: se entendi o que disse, no caso de uma família com muitas possibilidades económicas, se o filho for para uma escola do Estado, dadas as carências que existem, essa família deverá pagar os estudos dessa criança. Assim, parece que as escolas do Estado não terão que ser completamente grátis para quem tenha essa possibilidade de pagar.
Vítor Melícias – Além de me congratular muito com a clareza, com a profundidade e a segurança do ensino do senhor Prof. Jorge Miranda, gostaria de fazer uma referência apenas a um dos aspectos, não tanto para ser debatido aqui, mas para que mereça a atenção de pessoas com a competência do senhor Prof., no futuro, em diversos lugares e oportunidades. É a questão da gratuitidade progressiva, e o financiamento a fazer pelo Estado, na parte em que lhe compete, das actividades exercidas, sobretudo no domínio dos direitos sociais e culturais. Existe, de facto, pelo menos esta dupla possibilidade de visão ou hipótese: os que acham que devem ser subsidiados os prestadores dos serviços, neste caso, as escolas ou as instituições sociais, e os que entendem que devem ser subsidiados ou financiados, comparticipadamente, pelo menos, os cidadãos integrados em família, ou, porventura, as próprias famílias. Julgo que em Portugal é exactamente este o momento bom para que as pessoas, com esta competência, aprofundem e divulguem o próprio tema, e ajudem a construir uma visão, que depois permita a aplicação concreta das regras que devem ser seguidas. O facto é que, em actividades muito paralelas da actividade escolar, como, por exemplo, a assistência da saúde que referiu, a assistência social a idosos, deficientes e outros, os próprios serviços do Estado durante muito tempo e até muito recentemente, não admitiam que as famílias, por exemplo, ou os cidadãos, comparticipassem nos custos do exercício dessa actividade. Hoje já há uma abertura grande aí.
Por outro lado, este Governo preconiza, no seu programa de actividades, que o financiamento deve ser feito às famílias e não às instituições, princípio que, aliás, pessoalmente também tenho defendido. Parece-me que o pagamento, a entrega deve ser feita às instituições, quando as famílias não tenham condições de fidelidade e condições concretas para serem elas a entregar o financiamento que eventualmente recebam, mas julgo que quem tem o direito último de ser o titular do direito à comparticipação ou ao apoio, é o cidadão integrado em família. O tema, de qualquer maneira, julgo que não deve ser tratado aqui hoje, mas merecia um aprofundamento, e falo nele, exactamente para solicitar que, em momento oportuno e pelos meios mais adequados, o senhor Prof. nos ajude a debater este tema, que julgo que é efectivamente muito importante. Até para que possamos cumprir o que diz, e muito bem, a saber, que gratuitidade não significa que deva ser tudo gratuito: quem pode paga, quem não pode, não paga, nas circunstâncias que depois venham a ser entendidas.
Manuel Porto – Agradeço muito ao senhor Prof. Jorge Miranda, meu caríssimo Amigo, o excelente contributo proporcionado. Da sua comunicação sublinhava dois aspectos, aliás ligados. Um deles é a exigência de que sejam promovidos projectos educativos de qualidade. Trata-se, sem dúvida, de exigência a fazer no ensino privado, e de facto temos aqui projectos de grande qualidade; mas é também obviamente uma exigência que tem de ser feita ao ensino público, onde aliás nós os dois temos a honra de ter responsabilidades em excelentes escolas. O outro aspecto a sublinhar é o de ter de se exigir ao Estado que regule o ensino, no melhor sentido, tanto o ensino privado como o ensino público.
Jorge Miranda – Relativamente à primeira pessoa que interveio, não foi propriamente uma pergunta, foi uma consideração de carácter geral, sobre o modo como se relacionam ou não relacionam família e escola. Isso está ligado, julgo eu, em larga medida, à tal deficiência cultural e cívica portuguesa, e muito ligado também à falta de sentido participativo que se tem vindo a verificar em todos os domínios: desde as assembleias de condóminos que não têm o quórum necessário para funcionar (todos verificamos, verifico isto no meu prédio), até às abstenções eleitorais, ao desinteresse. Além dos mais, estamos completamente anestesiados pelo futebol, sujeitos ao totalitarismo do futebol, e, portanto, é evidente que depois não há tempo para o resto. Tudo isto é profundamente deseducativo. Desculpem que o diga aqui, neste lugar e neste momento: este excesso de futebol, não um futebol com conta, peso e medida, mas este excesso na vida nacional todo a girar à volta do futebol, o campeonato europeu, como um desígnio nacional, e outras coisas, é profundamente deseducativo. Ainda por cima sabendo que ao futebol está associada a violência, associada a corrupção, associado o negócio, etc., etc. Portanto, um país que viva na margem, ou à mercê do futebol, ou que se vê no espelho do futebol, é um país que não tem futuro em matéria de educação. Desculpem que diga isto, mas é o que me parece. E, portanto, o que disse há pouco é uma consequência disto tudo.
Quando falo em projecto educativo, estava a pensar no projecto educativo das escolas particulares. E julgo que deveria estabelecer-se que qualquer escola particular deveria aparecer com um projecto educativo, seja um projecto educativo confessional, seja um projecto educativo pedagógico. Com isto respondo à pergunta do Prof. Manuel Porto: pode ser um projecto pedagógico que não seja em si confessional. Pode ser uma inovação pedagógica, uma área nova de ensino, uma outra maneira de ensinar, uma outra maneira de comunicar com a família, pode ser isso. Também sabemos que muitas vezes, conheço casos desses, em certas regiões, onde o Estado não tinha criado escolas, eram particulares que criavam escolas. Lembro-me, por exemplo, no meu tempo de juventude, em Famalicão, vejam lá, em Famalicão, há quarenta anos, não havia um liceu! Era um externato particular que havia. O Estado não criava um liceu. No distrito de Viana do Castelo, só havia um liceu, o liceu até ao 5.º ano, as pessoas para fazerem o 6.º e o 7.º ano de liceu tinham de ir do distrito de Viana do Castelo para Braga. E, portanto, aí apareciam escolas particulares, e deve-se prestar homenagem a esses pioneiros de educação, que se substituíram e que fizeram aquilo que o Estado não fez. Mas hoje, nesse aspecto, a situação é diferente. Portanto, acho que uma lei – não conheço esta lei que agora está a ser aprovada – deveria impor um projecto educativo, um projecto preciso. E iria até mais longe: só aquelas escolas que tivessem um projecto educativo preciso, é que deveriam ter depois os benefícios de ordem financeira que o Estado, a meu ver, deve conceder. As outras então serão mercantis; e, realmente há muitas escolas mercantis, confesso, sobretudo a nível universitário, há muitas escolas mercantis, para não dizer mais nada.
Quanto à escola pública em si, não tem de ter um projecto educativo, porque é não confessional. Poderá diferenciar-se pela qualidade científica, pedagógica, agora na medida em que é pública, ela não aparece identificada. O único projecto educativo que ela poderá ter, é aquele que resulta das orientações da maioria parlamentar, digamos assim. Será o único projecto educativo em correspondência com a Constituição, com a Lei de Bases da Educação, com os objectivos que o Governo, apoiado na maioria parlamentar, em cada momento liga à educação. Outra coisa é essa enorme instabilidade que existe nos professores, neste momento, que não havia quando eu andava no ensino secundário, enfim, os liceus tinham o professor a, b, c, e d. O professor de liceu tinha um prestígio social que não tem hoje o professor universitário. Mas isso tem a ver com outras mudanças que se deram na sociedade, umas positivas, a democratização do ensino, outras negativas, uma certa massificação, e um enorme abaixamento do nível dos professores. Desculpem que diga, enorme, enorme abaixamento de nível. Eu vejo os meus alunos no 1.º ano da universidade, a quem faço testes de cultura geral, e não têm cultura nenhuma. Já tenho contado várias vezes isto, uma vez houve uma aluna que me disse que Portugal só era independente desde o século XIX! E como eu tivesse feito um grito de espanto, ela disse: “Desculpe, é desde o século XV”! Há coisas absolutamente espantosas. Portanto, o grave problema é o ensino secundário, este é que é o problema básico que nós temos. Portanto, está tudo ligado provavelmente a essa instabilidade dos professores, que são números atirados para aqui e para acolá. Portanto, deveria haver uma sistema de fixação dos professores, em vez de estarem dependentes dos jogos do computadores, enfim, que às vezes se enganam, etc., etc.
Quanto aos pontos do Prof. Adão da Fonseca: relativamente ao art.º 75.º, a ideia que tenho, é a de que o Estado tem por obrigação criar uma rede pública de estabelecimentos de ensino. Naturalmente, se o Estado cria uma escola pública numa certa área, essa escola é para servir as pessoas dessa área. A meu ver, só em casos muito difíceis e excepcionais, é que poderá permitir-se que uma pessoa que more numa certa área, onde há uma escola pública, pretenda pôr os filhos a frequentar uma escola pública noutra área. Uma coisa é a escolha entre escola pública e escola não pública, outra coisa é a escolha entre a escola pública. Se moro aqui no Campo Grande, é natural que os meus filhos vão frequentar a escola do Campo Grande em vez de frequentarem a escola do Restelo ou a escola de Benfica. Portanto, aí, não quer dizer que tenha de ser rígido, mas parece-me que seria razoável que fosse assim; se moro em Abrantes, e se tenho uma escola em Abrantes, não tem muito sentido que vá pôr os meus filhos em Tomar. Salvo em situações absolutamente excepcionais, mas parece-me que é difícil entender de outra maneira.
Em relação à escola pública, como digo, o princípio da gratuitidade é aquele que eu disse valer não apenas para as universidades, mas para as escolas de todos os graus, salvo para o ensino básico, porque quanto ao ensino básico, há um imperativo, desde logo, de gratuitidade. De gratuitidade pura e simples. Aliás, gratuitidade de que nós, e os estudantes, muitas vezes temos uma visão pobre; gratuitidade é só não pagar propinas, mas os custos do ensino são muito superiores ao pagamento das propinas: os livros, as deslocações, o alojamento, a nível superior, a privação de um trabalho, de um salário por se estar a estudar em vez de se estar a trabalhar; portanto, reduzir a gratuitidade à questão da taxa escolar, é uma visão muito redutora. Agora entendo que se justifica a gratuitidade, no sentido de adequação às necessidades económicas, portanto, gratuitidade efectiva para aqueles que não têm por onde pagar e até mais do que isso, subsídios. Aí sim, é que pode ser a intervenção directa: subsídios para compra de livros ou para empréstimos de livros, por exemplo, subsídios para alimentação, subsídios para transportes, bolsas de estudo, aí tem que se personalizar, isso é também realizar a gratuitidade. Agora aqueles que podem pagar, não faz sentido que não paguem. Isso também vale para as instituições de saúde: eu há dois anos, fui fazer uma cardiopressão no Hospital de Santa Maria, tinha um problema de arritmia, estive lá umas horas e depois paguei três euros por uma máquina que esteve ali a trabalhar durante cerca de vinte minutos, e um quarto que esteve ocupado! Enfim, pessoas muito simpáticas que me arranjaram esse tratamento de excepção, mas só paguei três euros! Acho que é uma profunda injustiça! Podia pagar trinta euros, até podia pagar trezentos ou até três mil para que me resolvessem o problema da arritmia. Portanto, este princípio vale também para a saúde, assim como vale para a justiça, vale em geral, para todas as obrigações do Estado. Há estudos económicos,
o Prof. Manuel Porto sabe melhor que eu essa matéria: a gratuitidade pura e simples é o fim do Estado social. Portanto, deve haver uma adequação às capacidades económicas. Agora isso também envolve depois o tal problema da reforma fiscal, o tal problema, mais uma vez, da consciência ética, etc., etc.
Depois em relação ao senhor P.e Vitor Melícias, o sistema, de facto, o sistema de subsídio directo à escola, a ideia que resulta da minha exposição é que, para efeitos de taxas escolares, será preferível o sistema do subsídio directo à escola. Depois pode haver o sistema de bolsa de estudo relativamente aos alunos, mas não o cheque-ensino. Penso que seria preferível essa solução.
Julgo que respondi mais ou menos às perguntas.
Rui Alarcão – Felicito de novo o senhor Prof. Jorge Miranda, e renovo os agradecimentos que já foram feitos pelo senhor Prof. Manuel Porto.