Painel II

Construção da Qualidade na Escola

CONTRIBUTO PARA A CONSTRUÇÃO DA QUALIDADE NA ESCOLA1

MANUEL VIEGAS ABREU*

INTRODUÇÃO

Em primeiro lugar, desejo agradecer à Prof.ª Teresa Ambrósio o convite para participar neste fórum, que me permitiu regressar ao convívio do Conselho Nacional de Educação após alguns anos de ausência. É sempre agradável voltar e encontrar pessoas que há muito tempo acompanham os problemas da educação, que procuram equacioná-los e analisá-los com rigor, contribuindo para a exploração dos caminhos mais adequados à sua resolução. É também neste espírito que aqui me encontro.

Tenho a noção de que aquilo que irei dizer será provavelmente considerado como utópico, mas creio que o caminho para a superação de reconhecidas dificuldades do sistema educativo requer alguma utopia. Tenho também a impressão de que o tempo previsto será excessivamente curto para analisar, com suficiente amplitude, questões tão complexas como as que estão envolvidas na avaliação e construção da qualidade na escola. Nesta medida, alguns tópicos ficarão apenas esboçados, aguardando oportunidade para ulterior explanação.

Organizei esta comunicação em três partes principais. A primeira pretende contribuir para a indispensável clarificação do que se entende por “qualidade”. A segunda explicita um conjunto de razões que fundamentam a necessidade de identificar e de analisar alguns indicadores da falta de qualidade do sistema educativo. E a terceira apresenta cinco sugestões, quer no plano da teoria quer no plano da prática, para contribuir para a construção da qualidade nas escolas.

*Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra

1A elaboração desta comunicação, inscreve-se no âmbito das actividades do Projecto de investigação Da psicologia da motivação e da aprendizagem à renovação qualitativa do ensino (POCTI/PSI/871/95/Fase 2) integrado no “Instituto de Psicologia Cognitiva, Desenvolvimento Vocacional e Social”, A Unidade de Investigação e Desenvolvimento, apoiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia.

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1. BREVE REFLEXÃO SOBRE A INDISPENSÁVEL CLARIFICAÇÃO DO

CONCEITO DE QUALIDADE

1.1. Ao analisarem-se questões sobre a “Qualidade e Avaliação da Educação”, creio ser indispensável procurar uma clarificação do que se entende por qualidade. Considero que a qualidade, quer no que respeita a actividades das pessoas ou dos indivíduos, isoladamente considerados, quer de grupos sociais ou de organizações mais ou menos complexas, decorre não apenas dos resultados ou dos produtos dessas actividades mas sobretudo do modo como eles são alcançados. A clarificação do que se entende por qualidade requer que se proceda à análise das relações entre as finalidades (objectivos ou metas) das actividades das pessoas e das organizações, e os meios (recursos e processos) pelos quais essas finalidades são prosseguidas e alcançadas. Para a avaliação da qualidade torna-se indispensável responder às duas seguintes questões:

1) Será que os resultados obtidos ou os produtos realizados correspondem às finalidades ou às metas inicialmente formuladas?

2) Será que os meios, os recursos e os processos, utilizados na prossecução das metas são os adequados? Nesta perspectiva, os termos de referência da qualidade e da respectiva avaliação são os seguintes: a) em primeiro lugar, a consideração dos objectivos, das metas ou das finalidades a

alcançar pela actividade de uma pessoa, grupo ou organização;

b) em segundo lugar, a consideração da estrutura dos meios, dos recursos e dos processos pelos quais esses objectivos serão atingidos no decurso das actividades desenvolvidas;

c) em terceiro lugar, a comparação entre as metas propostas e os resultados obtidos em termos operacionalmente verificáveis.

Importa igualmente ter em consideração que a qualidade dos resultados deve ser prioritariamente reportada mais aos processos do que aos conteúdos, mais ao modo como uma actividade é desenvolvida para atingir o objectivo em vista do que à quantidade dos produtos alcançados. A dicotomia quantidade-qualidade é muitas vezes invocada para identificar a qualidade, embora da sua diferenciação relativamente à quantidade não decorra uma especificação suficientemente clara do que é a qualidade. Julgo que não é absolutamente seguro obter melhor qualidade dos resultados de uma produção por intermédio da simples redução da quantidade dessa produção. Invoquemos um exemplo, que no debate em torno das comunicações desta manhã foi largamente referido: a extensão dos programas ou a quantidade dos conteúdos curriculares das disciplinas de quase todos os níveis de ensino, designadamente do secundário. Sem dúvida que não é por “facilitismo”, por

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menor “exigência” ou eventual “fuga ao trabalho” que os professores criticam a extensão desmesurada dos programas actualmente em vigor. É certamente porque essa extensão inibe ou impede os professores de adoptarem outros métodos de ensino que não seja o expositivo, não lhes permitindo tempo para a adopção de métodos diversificados que envolvem a realização de trabalhos de natureza experimental ou ensaios de resolução autónoma de problemas por parte dos alunos. É sabido que estes métodos activos de aprendizagem são mais favoráveis ao desenvolvimento do espírito científico e da capacidade de resolução de problemas dos alunos do que o método expositivo. Mas é igualmente conhecido que eles consomem muito tempo, dificultando aos professores o cumprimento cabal dos programas. Estamos, assim, perante um conflito quantidade-qualidade, que, no domínio da educação, originou múltiplas metáforas como a que Montaigne formulou, no Renascimento, entre “une tête pleine” e “une tête bien faite”. Como resolver o conflito? O que aqui defendo é que não basta reduzir simplesmente os programas. A desejável redução dos programas tem de ser precedida por uma reflexão sobre a adequação entre os conteúdos programáticos e as metas formativas, de forma a seleccionar os conteúdos que são mais apropriados para a obtenção das referidas metas.

1.2. Por outro lado, a clarificação do conceito de qualidade, designadamente nas organizações complexas como são as escolas, requer que se identifiquem interacções e redes de interacções complexas que se estabelecem entre os componentes estruturais e funcionais dos sistema. A avaliação da qualidade das escolas e das diversas actividades envolvidas na educação requer uma abordagem relacional ou sistémica adequada à complexidade da rede de interacções que integram o sistema. O “modelo relacional e dinâmico do sistema educativo”, que está esquematicamente descrito no Quadro que aqui se apresenta, pretende mostrar visualmente a complexidade de relações que se estabelecem entre:

a) os principais protagonistas de uma organização, que no esquema estão indicados na coluna 1 (Quem);

b) as metas ou finalidades formativas do sistema indicadas na coluna 4 (Para quê) e que decorrem das motivações, aspirações ou expectativas dos protagonistas relativamente à educação;

c) as tarefas ou actividades a realizar para alcançar as metas formativas, tarefas e actividades que estão indicadas na coluna 2 (O quê);

d) os métodos e processos pelos quais essas actividades se realizam e que estão elencados na coluna 3 (Como); e, finalmente, a avaliação global dos resultados, a análise da adequação entre estes e as finalidades propostas, e o feed-back do próprio sistema, que está representado como processo regulador da eficácia

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do conjunto e da eficácia de cada uma das partes relativamente à totalidade do sistema.

INTERESSES / MEIOS

ACTIVIDADES INTERMEDIÁRIAS OU INSTRUMENTAIS

MOTIVOS SUJEITOS DE ACÇÃO Necessidades, aspirações, dinamismo das relações dos sujeitos com o mundo

QUEM E PORQUÊ

. JOVENS E FAMÍLIAS

Concepções de escola Atitudes e expectativa . PROFESSORES Processo educativo

. SOCIEDADE ACTIVA (Empresas, instituições Solicitações de formação

produtivas e de prestação de serviços)

. INSTITUIÇÕES CIENTÍFICAS DE FORMAÇÃO E DE INVESTIGAÇÃO

. ORGANIZAÇÕES SINDICAIS
E PROFISSIONAIS

e dignificação da profissão

. ADMINISTRAÇÃO / PODER Políticas orientadoras LEGISLATIVO E EXECUTIVO Financiamento / Administração corrente

Pedidos e ofertas de emprego

Identificação de problemas Fundamentação de teorias Experimentação e Inovação

Estatuto, condições de trabalho

Verificação de mudanças

e de

aquisições de competências

Obtenção de resultados

Certificados

Clarificação de objectivos

Escolha de projectos de vidaClassificação e diplomas

PARA QUÊ

. DESENVOLVIMENTO PESSOAL

. ATITUDE CRÍTICA

. ESPÍRITO CIENTÍFICO

. CRIATIVIDADE

. PROGRESSO / / APERFEIÇOAMENTO CONTÍNUO, DO SABER-FAZER E DO SABER SER

. FORMAÇÃO DA CIDADANIA

PARA DESENVOLVIMENTO LOCAL REGIONAL, NACIONAL E INTERNACIONAL

EQUIDADE / QUALIDADE / EFICIÊNCIA / AVALIAÇÃO / REGULAÇÃO

FIGURA 1: Modelo dinâmico e interactivo do sistema educativo

Uma das vantagens do “modelo” é a que resulta da facilidade de apreensão da multiplicidade dos protagonistas envolvidos na educação (os alunos, as famílias, os professores, as instituições de investigação e de formação de professores, os sindicatos, as empresas) e da complexidade de redes de interacções que se estabelecem entre eles e as actividades intermediárias ou mediadoras, por um lado, e as finalidades ou metas formativas, por outro. Da análise do modelo ressalta a importância das metas ou das finalidades formativas do sistema educativo enquanto “concertação convergente” de necessidades, aspirações e expectativas dos diversos protagonistas ou agentes de educação. Importa, por isso, identificar quais são as metas ou finalidades do sistema educativo. As finalidades que se encontram explicitadas no “modelo” são as que foram consignadas na Lei de Bases do Sistema Educativo. É útil lembrar, aqui, de forma global, as principais metas formativas que

o sistema educativo pretende alcançar:

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  • O desenvolvimento da personalidade integral dos alunos, contribuindo para formar cidadãos capazes de se desenvolverem a si próprios e de serem capazes de participar no desenvolvimento local, regional, nacional e internacional;
  • O desenvolvimento da atitude crítica ou da capacidade de proceder, de forma autónoma, a avaliações da realidade circundante e de ponderar as decisões que se revelem mais adequadas;
  • O desenvolvimento do espírito científico e da capacidade de equacionar problemas e de ensaiar e testar as melhores metodologias para os resolver;
  • O desenvolvimento da criatividade, da iniciativa e o aperfeiçoamento contínuo do saber, do saber fazer e do saber ser.

Entre os protagonistas e as suas finalidades ou os seus projectos de acção, em que estão envolvidas as suas motivações, aspirações, objectivos, situam-se as actividades mediadoras. A escola como sede dessas actividades aparece ela própria como uma organização mediadora, intermediária ou instrumental. Com efeito, o sistema escolar não se justifica a si mesmo, isto é, não tem em si mesmo a sua razão de ser. É, por isso, uma instituição cultural que se justifica em função das necessidades de desenvolvimento das pessoas, grupos e organizações e das metas que neste sentido são formuladas. É em função da obtenção dessas metas que é estruturado um conjunto diversificado de actividades. No “modelo” estão referenciadas, na coluna “do que fazer”, a estruturação curricular e a formulação dos conteúdos programáticos, e, na coluna do “como fazer”, estão indicadas as actividades ligadas à motivação (ou envolvimento de alunos e professores nas actividades), aos métodos de ensino e de aprendizagem, à orientação escolar e profissional, às actividades de apoio psico-pedagógico e à avaliação das aprendizagens e do desenvolvimento dos alunos na sua progressão em direcção às metas formativas.

1.3. Com a apresentação do “modelo relacional e dinâmico do sistema educativo”,

o que pretendo mostrar é que ele, ao permitir apreender e visionar a complexidade da rede de relações que se estabelecem no sistema educativo, constitui um instrumento de análise útil para a avaliação do funcionamento do sistema.

Com efeito, tendo em conta os dados da prática pedagógica e os indicadores correntes do funcionamento das escolas, o modelo permite identificar os pontos onde se situam os disfuncionamentos e onde têm origem as faltas de qualidade, o que constitui um factor importante a ter em conta na avaliação da qualidade. Nesta medida, podemos perguntar: Quais as redes de interacção que estão a falhar? Onde é que se situam as fontes de crise? Onde se originam as faltas de qualidade?

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Tendo presente o “modelo” proposto e tendo em conta dados respeitantes à situação actual do sistema, à sua evolução recente, e aos resultados da prática pedagógica corrente, é possível identificar com facilidade duas fontes principais de disfuncionamento:

a) a sobrevalorização dos “conteúdos” relativamente aos “processos

b) a concepção e a vivência da “ avaliação”, predominantemente classificativa, como uma finalidade das actividades escolares, verificando-se, deste modo, que um processo mediador ou instrumental, como é o processo da avaliação, é deslocado do seu lugar próprio para o lugar de uma meta ou finalidade a atingir.

c) A sobrevalorização sistemática da transmissão dos conteúdos programáticos (o quê e quanto ensinar) relativamente ao aperfeiçoamento dos métodos e processos (o modo como ensinar, aprender e avaliar) é atestada quer pela extensão excessiva dos programas das disciplinas curriculares, extensão reconhecida e denunciada pela maioria dos professores, quer pela centração das sucessivas reformas do sistema educativo nas mudanças de estrutura curricular e na remodelação dos conteúdos dos programas das diversas disciplinas. Esta focalização sobre as informações a transmitir pelos professores e sobre os conhecimentos a adquirir pelos alunos denota o predomínio de uma concepção de escola transmissiva e reprodutora de conhecimentos considerados socialmente relevantes para a prossecução dos alunos nos estudos. A centração sobre os conteúdos é correlativa de uma menor atenção, ou até mesmo de uma sistemática negligência, relativamente à renovação dos métodos de ensinar, das estratégias de motivar as aprendizagens e de modalidades alternativas de avaliar o progresso ou o desenvolvimento dos alunos.

d) A concepção e a vivência da “avaliação”, predominantemente classificativa, como uma finalidade das actividades escolares é testemunhada pela prática pedagógica corrente, toda ela orientada para a realização de testes de avaliação de conhecimentos e exames. Com efeito, o que a observação da prática nas escolas nos revela é que a preocupação dominante dos professores ao ensinar é a de transmitirem, em cada aula, a matéria do programa, de forma a “terem matéria” suficiente para realizarem dois testes em cada período e para poderem apresentar as “classificações” no final de cada um deles e no final do ano. Por seu turno, os alunos estudam não tanto por um interesse intrínseco pelos conteúdos dos programas mas para responderem às perguntas dos testes e, assim, alcançarem uma “nota” que lhes assegure a passagem de ano ou o acesso a um nível superior de ensino. Prioritariamente, é para a realização dos testes que os professores ensinam e que os alunos estudam. E é o cumprimento deste “ritual” que as famílias dos alunos, pais e encarregados de educação, na sua grande maioria, esperam da escola: de tudo

o que se passa na escola, são os resultados dos testes o que mais interessa os

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pais. Verifica-se, deste modo, que os principais protagonistas do sistema concebem e vivenciam a avaliação classificativa como se ela constituísse a finalidade das actividades de ensinar e de aprender. A centração nesta modalidade de avaliação como uma meta ou finalidade a atingir consubstancia uma deslocação funcional da avaliação do seu lugar próprio no sistema. Em vez de processo mediador ou instrumental, regulador do progresso das aprendizagens, a avaliação (classificativa) passa a ocupar o lugar que é próprio das metas ou finalidades formativas formuladas em termos de desenvolvimento das potencialidades dos alunos. A concepção e a vivência, sem questionamento crítico, da modalidade de avaliação classificativa como objectivo ou finalidade das actividades escolares, concepção e vivência partilhadas pela maioria dos protagonistas do sistema educativo, constitui um fonte de persistente mal-estar, de exclusões e de violência que têm vindo progressivamente a perturbar o funcionamento das escolas.

(Entre parêntesis, e a fim de evitar equívocos desnecessários, desejo esclarecer que a crítica à prevalência da modalidade de avaliação classificativa não significa crítica a qualquer modalidade de avaliação. O que tenho vindo a defender é a substituição da avaliação classificativa por modalidades de avaliação formativa, capazes de mostrar se as metas formativas formuladas para cada nível de ensino foram ou não alcançadas pelos alunos no termo de cada ano de ensino ou final do período de formação. Todo o processo de formação e de aprendizagem exige procedimentos de avaliação para que se possa acompanhar, regular e aperfeiçoar a marcha da formação. A função da avaliação formativa não reside em classificar, mas em fornecer informações acerca da progressão dos formandos em relação às metas propostas para o seu desenvolvimento. A avaliação formativa é intrínseca ao processo de aprendizagem e de desenvolvimento dos alunos; a avaliação classificativa é extrínseca a esse processo, serve fins que lhe são exteriores, devendo, por isso, ser substituída no processo educativo).

Os dois indicadores de disfuncionamento do sistema educativo que temos vindo a analisar (a prevalência dos conteúdos sobre os processos de ensino, por um lado, e a importância dada à avaliação classificativa como uma meta formativa, por outro lado) têm em comum a obnubilação, a negligência ou o esquecimento, dos objectivos ou das finalidades formativas do sistema. E é nesta ausência de preocupação com a operacionalização das metas formativas, em termos de desenvolvimento da personalidade integral dos alunos, correlativa de uma ausência no estabelecimento das relações entre as actividades mediadoras (conteúdos e processos de ensinar, de aprender e de avaliar), que reside uma da principais fontes da crise crónica e da perda de qualidade do sistema.

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É com base neste diagnóstico que as sugestões para a construção da qualidade nas escolas irão ser apresentadas. Antes, porém, importa especificar e articular teoricamente um conjunto de cinco indicadores de “crise” do sistema, alguns deles já de longa duração e outros de emergência mais recente.

2. O DESFASAMENTO ENTRE OS RESULTADOS DE INVESTIGAÇÕES SOBRE OS INDICADORES DE CRISEE O RECONHECIMENTO (TARDIO) POR PARTE DOS DECISORES POLÍTICOS DA FALTA DE QUALIDADE DO SISTEMA

Esta segunda parte da comunicação visa dois objectivos: apresentar um conjunto de indicadores de disfuncionamento do sistema, procurando articulá-los na sua aparente diversidade, e questionar o lento reconhecimento que por eles manifestaram os responsáveis pelas orientações e decisões políticas. De facto, perante a recente preocupação com a qualidade das escolas, nos seus diferentes níveis, cabe perguntar: Porquê só agora? Este surto de preocupação com a qualidade das escolas funda-se num diagnóstico consistente das falhas do sistema e tem por finalidade colmatá-las ou corrigi-las? Ou tem origem numa pressão exterior, constituindo assim uma espécie de “moda” importada, directa ou indirectamente relacionada com questões de financiamento público, de contenção orçamental e de liberalização do sistema educativo?

Antes de mais, e com a brevidade que o tempo impõe, passemos em revista cinco indicadores da “crise” do sistema educativo, uns de ocorrência persistente ou quase crónica, outros de emergência mais recente. Muitos destes indicadores são frequentemente apresentados de forma indirecta e desligados uns dos outros. Todavia, todos eles têm em comum a “denúncia” das falhas e deficiências do sistema educativo ou dos obstáculos ao seu aperfeiçoamento, permitindo que sobre eles se promova uma reflexão de conjunto.

2.1. As elevadas percentagens de insucesso e de abandono escolar constituíram os primeiros sintomas de que o sistema não estava a dar resposta às necessidades de grupos numerosos de jovens. Diversos investigadores procuraram identificar os factores de insucesso, uns mais ligados a variáveis de natureza sociológica e outros mais relacionados com o modo de organização das actividades pedagógicas ou com características psicológicas dos alunos. A resposta dos decisores políticos aos sinais de disfuncionamento focalizou-se nas grandes reformas curriculares, na procura de renovação dos programas e na tentativa de actualização dos respectivos conteúdos, não se notando nenhum cuidado relevante com a renovação dos métodos de ensinar, de motivar e de apoiar as aprendizagens dos alunos. A concepção de escola como

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espaço de transmissão de conhecimentos e de avaliação da sua reprodução pelos alunos por intermédio de exames verbais não era questionada.

2.2. Aos indicadores de “crise” acima mencionados vieram juntar-se recentemente indicadores de “iliteracia” que se reportam à rapidez com que decaem os conhecimentos adquiridos e certificados por diplomas. É como se os conhecimentos aprendidos nas escolas servissem apenas nas situações escolares e não fossem transferíveis para as situações da vida prática. Vão nesta mesma direcção os resultados das avaliações de diversas instâncias internacionais que nos colocam na cauda dos ranking ou próximo dela. E a estes junta-se o acréscimo de indisciplina e de violência escolares, indicadores sintomáticos de que a “crise” do sistema ou os seus disfuncionamentos estão a atingir pontos de saturação ou limiares de intensidade inaceitáveis para muitos alunos. Estes novos indicadores de crise exigem respostas diferentes das que são habituais. De nada adiantam mais reformas, mais revisões curriculares ou mais actualizações de conteúdos programáticos. Da parte dos decisores políticos não se vislumbram propostas novas e aquelas de que se vai ouvindo falar não parecem apontar no sentido da renovação qualitativa dos métodos e dos processos de ensinar, de aprender e de avaliar. E todavia espera-se uma maior sensibilidade para os resultados de trabalhos de investigação de natureza experimental, teórica e de campo. Ouvem-se referências à necessidade de exigir mais rigor, mais exigência, mais esforço, mais eficiência aos alunos e às escolas. Através de que meios? Mais exames, mais testes e provas de avaliação classificativa para os alunos? E para as escolas? Mais “avaliações da qualidade” do ensino por elas ministrado, segundo o modelo de “análise do rendimento” em vigor, sem questionamento das finalidades formativas das escolas?

2.3. Um sintoma extremamente sensível e revelador do disfuncionamento do sistema educativo está directamente ligado ao processo recente da avaliação das escolas. Todos recordam a polémica gerada em torno da decisão do Professor Augusto Santos Silva, então Ministro da Educação, de não publicitar nos órgãos de comunicação social os resultados dos Relatórios da avaliação das escolas elaborados pelos serviços da Inspecção Educativa. Num artigo publicado no “Expresso” de 31 de Março de 2001, o então Ministro justificou essa recusa apoiando-se em três princípios:

1) o desempenho das escolas não pode ser reduzido a uma escala unidimensional, fundada no rendimento escolar dos alunos;

2) a elaboração de um ranking oficial de escolas pode induzir efeitos negativos de comparação entre escolas, conduzindo a estigmatizações e exclusões prejudiciais;

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3) a competitividade entre escolas não é único caminho para estimular a qualidade.

Não deixa de suscitar curiosidade que o Professor Augusto Santos Silva não tenha acrescentado no texto do artigo o seguinte: estes princípios devem aplicar-se igualmente à avaliação classificativa dos alunos. As razões invocadas para justificar as reservas respeitantes à publicitação dos resultados da avaliação das escolas aplicam – se cabalmente à avaliação classificativa dos alunos. É legítimo perguntar: Como é possível ver efeitos negativos no ranking ou na classificação das escolas e não os ver na avaliação classificativa dos alunos? Esta posição é, em si mesma, reveladora da dificuldade ou da resistência, passiva ou “não-consciente”, em repensar a avaliação dos alunos e propor mudanças na modalidade dominante de avaliação classificativa. Mas revela sobretudo a inconsistência teórica que tem caracterizado as decisões respeitantes ao sistema educativo!

2.4. Esta inconsistência teórica acerca de questões tão relevantes como são as que se reportam à avaliação das escolas e à avaliação dos alunos é sintoma de desorientação conceptual, de ecletismo ou mesmo de ausência de um quadro teórico consistente e claramente fundamentado, na base no qual se possa articular e dar sentido à diversidade de orientações e decisões da política educativa. E é a esta “nebulosa conceptual” ou falta de clarificação teórica em torno do sistema educativo português que julgo referir-se o Dr. Jorge Carvalhal nas três perguntas que formulou no comentário que foi convidado a fazer à conferência do Dr. Diogo Lucena sobre “Um novo Quadro para

o Sistema de Educação em Portugal” integrada no III Congresso da SEDES, realizado em 1998 e subordinado ao tema “Portugal, o Euro e a Globalização”.

São perguntas fortes, desassombradas, a exigirem reflexão aprofundada e respostas igualmente corajosas. Eis a primeira pergunta:“Que atavismo social se abateu sobre o sistema educativo português que o impede de dar resposta satisfatória às necessidades e exigências das pessoas e da sociedade?” O factor de crise do sistema é aqui apelidado de “atavismo social”, pretendendo o autor significar que se trata de um obstáculo de “longa duração”, transmitido de geração em geração e socialmente partilhado, sem que tenha havido, até agora, capacidade para o questionar, identificar e remover.

A segunda pergunta não é menos importante: “O que é que é preciso mudar – mudar e não apenas reformar – para que a educação (...) esteja sintonizada com o pulsar do mundo contemporâneo?” É muito nítido aqui o cepticismo a respeito da eficácia das reformas de que o sistema tem sido objecto. As reformas, predominantemente de conteúdos, não têm contribuído para introduzir mudanças significativas nos processos de ensino. As reformas têm-se sucedido e as dificuldades persistem. Daqui a exigência

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de mudanças na articulação entre métodos e finalidades formativas. Para a superação dos factores de crise não basta elaborar novas “recomposições” com a mesma “matéria”: é preciso fazer mudanças nos métodos, introduzindo novas concepções e novas práticas.

A terceira pergunta é igualmente relevante: “O que é que é necessário inovar, no pensamento e na acção, para que o sistema educativo produza os resultados que dele se esperam, tendo em conta, por um lado, as necessidades e as aspirações individuais e colectivas e, por outro, os recursos nele aplicados?” O autor considera que as inovações de que o sistema educativo carece se situam tanto no plano do pensamento como no plano da acção. Este é um ponto que merece ser sublinhado na medida em que, no domínio da Educação em Portugal, o trabalho de reflexão teórica tem sido subestimado, desvalorizado ou malquisto em nome de um pragmatismo sem visão ou de alegadas virtualidades atribuídas à prática, posição que tem contribuído para a “transmissão atávica” de concepções de escola e de educação que não correspondem às necessidades e aspirações das pessoas e das organizações perante as actuais condições de vida. Um dos factores da ineficácia das reformas é a ausência de uma nova concepção ou de uma nova teoria de conjunto da multiplicidade e complexidade dos protagonistas e das actividades envolvidas no sistema educativo. As três perguntas formuladas pelo Dr. Jorge Carvalhal colocam o “dedo na ferida”, apontando factores decisivos da “doença crónica” de que o sistema educativo português há muito vem padecendo, e, ao mesmo tempo, constituem desafios motivadores que importa enfrentar, com grande abertura conceptual, sem preconceitos nem atavismos intelectuais, tanto no plano pessoal como no plano colectivo.

2.5. A ausência de um quadro teórico orientador, susceptível de assegurar a articulação entre a heterogeneidade das decisões e a sua fundamentação conceptual, repercute-se em múltiplos aspectos do sistema, retirando-lhe qualidade. Exemplo ilustrativo é a representação social extremamente diluída acerca da natureza e da utilidade das disciplinas do 2.º e 3.º ciclos do ensino básico. O valor, a utilidade ou a “mais-valia” dessas disciplinas para o desenvolvimento das competências dos alunos não é muito visível. Para muitos pais, não aparece com suficiente nitidez a utilidade ou o “para quê” do estudo das Ciências da Natureza, da Física, da História ou de mais Matemática. Na sua aparente inocuidade, esta é uma questão com implicações relevantes. No livro recente de Dulce Neto e Marçal Grilo, “Difícil é sentá-los”, a questão é suscitada explicitamente a propósito da atitude dos pais relativamente às exigências do 1.º Ciclo, que é positiva, comparativamente à atitude perante as exigências dos dois Ciclos subsequentes, que é problemática. Pergunta a jornalista: “... não parece que dantes havia uma exigência de qualidade que agora não

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existe?” Resposta do ex-Ministro da Educação: “O problema não é de qualidade, é de relevância. É que a 4.ª classe, antigamente, era para os pais um patamar de que eles percebiam a importância, porque os miúdos saíam de lá a saber ler, escrever e contar. Isto é, não era só ter a 4.ª classe para poderem trabalhar; é que a 4.ª classe representava, para os pais, saber que os filhos sabiam ler, escrever e contar”. Nova pergunta da jornalista: “E agora, o que é que representa para os pais o sistema de ensino?” Resposta de Marçal Grilo: “Muito pouco. Isto é, eles têm a noção de que o sistema de ensino lhes dá umas ideias vagas, de umas coisas que eles vão aprendendo, uma Físico-Química, uma língua estrangeira, uma Geografia, uma História. Eles não vêem que o facto de um miúdo fazer o 9.º ano representa uma mais-valia na sua vida profissional. Entendem que aquilo serve para pouco. Eles sabem ler, escrever, mas andar nove anos para saber aquilo quando os pais andaram quatro. Hoje, eles acham que até ao 9.º ano é tudo muito vago, nada daquilo é uma coisa precisa, nada daquilo tem aplicação prática. Daí que se verifique que, a maior parte dos pais cujos miúdos terminam o 9.º ano, querem é que os filhos sejam doutores. “Já que fizeste nove anos, agora faz o resto do esforço e vê se és doutor”. (Neto, 2002, p. 112-113).

Consideramos que o factor de disfuncionamento do sistema que está aqui indiciado aponta para um déficit teórico que permitiu que, ao ter-se estendido a obrigatoriedade do ensino ao 3.º ciclo do básico, se mantivesse sem alterações adequadas a formulação das metas formativas, a estrutura curricular, as disciplinas e os respectivos programas desse ciclo, até então organizado para a aquisição de conhecimentos com vista a assegurar o prosseguimento dos estudos. O alargamento da obrigatoriedade da frequência escolar, em 1986, não foi acompanhado de uma reformulação de metas formativas operacionalmente definidas em termos de desenvolvimento de competências básicas, obviamente adequadas às necessidades, às exigências e às condições culturais e tecnológicas do mundo actual. Em vez da introdução dessa mudança, manteve-se, intocada, a concepção implícita da escola transmissiva de conhecimentos considerados úteis para o prosseguimento de estudos em níveis superiores do sistema educativo. Não admira, por isso, que os alunos e os seus pais, ultrapassado esse período em que os primeiros “andaram a estudar umas coisas”, prossigam mais uns anos e tentem entrar no ensino superior!

3. SUGESTÕES PARA CONSTRUIR UMA ESCOLA DE QUALIDADE,

NO PLANO DA TEORIA E NO PLANO DA PRÁTICA

É possível superar os efeitos conjugados de tantos factores negativos que contribuem para a situação de “crise crónica” do sistema educativo português? Considero que a tarefa é possível, embora tremendamente exigente. Como contributo para o planeamento desta tarefa, apresento, de forma sucinta, cinco sugestões, que se situam tanto no plano da reflexão, da concepção ou da teoria, como no plano da acção ou da prática.

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3.1. A primeira sugestão recomenda, como via absolutamente indispensável para superar disfuncionamentos crónicos e encetar um caminho de uma maior qualidade, que se proceda a um esforço de reflexão em torno das concepções sociais implícitas que se encontram subjacentes à organização e às práticas pedagógicas características de um modelo de escola transmissiva, reprodutora e classificativa ainda dominante. Esta reflexão constitui um primeiro passo para a substituição deste modelo “atávico” de escola para um novo modelo de escola focalizada no desenvolvimento da personalidade dos alunos. Esta sugestão é inteiramente conforme à proposta apresentada por Juan Carlos Tedesco no livro O novo pacto educativo (1999) e por Jerome Bruner no livro The culture of education (1996). Para mudar práticas há muito instaladas torna-se indispensável, em primeiro lugar, mudar representações, modos de ver ou concepções teóricas acerca daquilo que é a escola e acerca do que são as actividades de ensinar, motivar, aprender e avaliar. As concepções implícitas que se encontram subjacentes às práticas pedagógicas dominantes constituem, em nosso entender, o “núcleo duro” do “atavismo social que se abateu sobre o sistema educativo português”, que o Dr. Jorge Carvalhal tão bem denunciou na comunicação a que anteriormente fizemos referência. Para superar esse atavismo, é preciso ousar “questionar” as concepções teóricas que, de forma implícita ou “quase inconsciente”, se encontram subjacentes à organização tradicional do sistema educativo. Para mudar as práticas dominantes, torna-se imperioso mudar primeiro as concepções ou as teorias que estão na sua base.

3.2. A segunda sugestão recomenda que se dê prioridade à formulação das metas formativas de cada nível escolar, de cada ano e de cada disciplina, em termos de competências comprováveis por intermédio da execução de operações concretas, da resolução de problemas e da realização de tarefas significativas, relevantes para o desenvolvimento das potencialidades de cada um dos alunos e com utilidade social visível. É preciso começar pela definição das finalidades formativas das aprendizagens concebidas em termos de mudanças na articulação do saber e do saber-fazer, mudanças susceptíveis de serem traduzidas em acções observáveis de forma a permitir a verificação dos progressos dos alunos no caminho das metas inicialmente estabelecidas. E é em função dessas metas que se procederá à escolha dos conteúdos programáticos, tendo em conta a sua adequação ou utilidade para o treino dos processos de pensar, de equacionar problemas e de os resolver, bem como para o desenvolvimento das potencialidades dos alunos na realização de tarefas que especificamente traduzam ou manifestem essas potencialidades. É este o modo construtivo para diminuir a extensão vastíssima dos programas curriculares, extensão que põe os professores, designadamente os professores do ensino secundário, justificadamente, “à beira de um ataque de nervos”. A colocação das finalidades formativas de cada disciplina no horizonte e no primeiro plano das

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preocupações dos diversos protagonistas do sistema educativo permite reorientar e articular os conteúdos programáticos com os métodos de ensinar, de motivar as aprendizagens e de avaliar o seu progresso. Esta articulação entre as finalidades ou metas formativas do ensino (para quê ensinar), os conteúdos programáticos (o que ensinar) e os métodos ou processos pedagógicos (como ensinar) constitui condição indispensável para a renovação da qualidade do ensino. Reformas ou revisões curriculares centradas prioritariamente em mudanças de conteúdos dos programas estão condenadas a deixar a situação na mesma ou ainda pior. Em vez de perder tempo nessa direcção infecunda, importa concentrar esforços na formulação de metas formativas em termos operacionais e direccionadas para o desenvolvimento da personalidade dos alunos. Trata-se de começar a pôr em prática o modelo de escola orientada para o desenvolvimento da personalidade defendida por Bruner, Tedesco e outros, e apoiada na concepção de aprendizagem centrada na resolução de problemas, defendida e posta em prática por Barrows (1980) e Birch (1986).

3.3. A terceira sugestão recomenda que as modalidades de avaliação classificativa sejam substituídas por modalidades de avaliação formativa, de forma a permitir verificar as mudanças que vão sendo realizadas no decurso do processo formativo e compará-las, no final da formação, com as metas formativas definidas em termos operacionais (por ex., manter uma conversação em inglês, apresentar o relatório de realização de uma experiência, decidir entre projectos com base na análise dos respectivos custos e benefícios). Para facilitar esta substituição importa desfazer o equívoco segundo o qual a avaliação formativa é excessivamente teórica, destituída de experiência prática bastante, enquanto que a avaliação classificativa está ancorada numa experiência de longos anos, em que assentam práticas sociais de selecção, consideradas isentas de concepções teóricas. Nada mais enganador. As modalidades de avaliação classificativa têm subjacentes concepções teóricas que resultam da convergência entre a teoria darwinista da selecção natural das espécies biológicas e da teoria sociológica do desenvolvimento da sociedade fundado na constituição de “elites” com base na selecção dos melhores. Estas teorias são estranhas, por um lado, à missão de desenvolvimento e de compensação cultural da escola, e, por outro lado, à exigência da sociedade do futuro assente na crescente participação de todas as pessoas e na diversidade dos seus contributos. Todos somos diferentes mas todos temos capacidade, todos temos aptidão para alguma coisa na vida, só que a escola transmissiva, reprodutora e classificativa valoriza determinadas aptidões e negligencia completamente outras. Importa, por isso, focalizar as actividades escolares nas metas de desenvolvimento das potencialidades dos alunos e nas tarefas de avaliação dos progressos realizados na direcção dessas metas formativas.

CONTRIBUTO PARA A CONSTRUÇÃO DA QUALIDADE NA ESCOLA

3.4. A quarta sugestão recomenda a expansão e o aperfeiçoamento das redes de relações entre pais, professores e psicólogos escolares, de forma a promover a integração das aprendizagens e a identificação das aptidões, competências e potencialidades pessoais dos alunos, num processo de orientação escolar e profissional, a começar a partir do 2.º ciclo do ensino básico, centrado na construção progressiva de um projecto de vida por parte de cada aluno. O reforço da orientação escolar e profissional numa perspectiva integradora, interactiva e relacional, permitirá ultrapassar o fosso ainda existente entre a escola e o mundo envolvente das actividades produtivas.

3.5. A quinta sugestão recomenda que se proceda a uma reflexão sobre os efeitos dos métodos utilizados pelos professores do ensino universitário nos métodos utilizados pelos professores que se formam nas Universidades, na medida em que as práticas dos primeiros, nos processos que usam ao ensinar, ao motivar as aprendizagens dos alunos e ao avaliá-las, podem ser percepcionadas como “modelos” a seguir. Quer se queira quer não, as Universidades constituem simultaneamente uma “ponta de topo” e uma “ponta inicial” da organização escolar do sistema educativo, podendo considerar-se que é aí que muita coisa começa, para

o melhor e, eventualmente, para o menos bem. Sob este ponto de vista, podemos dizer que nada do que acontece nos restantes sub-sistemas de ensino, designadamente no secundário e no 3.º ciclo do básico, é indiferente ao que se passa, em termos de prática pedagógica, no ensino universitário. Nesta medida, importa proceder a uma análise das relações de influência das práticas pedagógicas vigentes nas Universidades nas práticas pedagógicas dominantes nas escolas dos restantes níveis de ensino.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Abreu, M. (1996). Pais, professores e psicólogos. Contributos para o desenvolvimento de uma prática relacional nas escolas. Coimbra: Coimbra Editora. Abreu, M. (2001). Desenvolvimento vocacional e estratégia de motivação para aprendizagens persistentes, Psychologica, 26, 9-26. Ambrósio, T. (2001). Educação e desenvolvimento. Contributo para uma mudança reflexiva da Educação. Lisboa: UIED, Universidade Nova de Lisboa. Barrows, H. & Tamblyn, R.(1980). Problem-based Learning: An Approach to Medical Education. New York: Publishing Company. Birch, W. (1986),Towards a model for problem-based learning. Studies in Higher Education, 11, 73-82. Bruner, J. (1996). The Culture of Education. Cambridge: Harvard University Press. Carvalhal, J. (2001), Comentário à Conferência de Diogo de Lucena, in Portugal, o Euro e a Globalização. III Congresso da SEDES. Lisboa: Editorial Notícias. Morin, E. (1999). Les sept savoirs nécessaires à l’éducation du futur. Paris: Seuil. Neto, D. (2001). Difícil é sentá-los. A Educação de Marçal Grilo. Lisboa: Oficina do Livro. Tedesco, J. C. (1999). O novo pacto educativo. Vila Nova de Gaia: Fundação Manuel Leão.

QUALIDADE DO ENSINO E CONHECIMENTO ESTRATÉGICO DO ALUNO: ALGUNS DESAFIOS E SINAIS DE TRANSIÇÃO

ANA MARGARIDA VEIGA SIMÃO*

INTRODUÇÃO

As minhas primeiras palavras são para agradecer a oportunidade de poder tecer algumas considerações sobre a construção da qualidade na escola. Ela passa pela criação de condições que estimulem e permitam que em cada escola se processe uma reflexão sobre a própria acção. Para tal, podem contribuir os olhares externos (as avaliações externas) e os olhares internos (a autoavaliação).

A avaliação é uma actividade fundamental a qualquer tipo de acção encaminhada para provocar modificações nomeadamente num objecto, situação ou pessoa. Neste sentido, e considerando o carácter intencional da acção educativa, torna-se muito difícil fazer referência ao processo educativo sem aludir à avaliação, cujo termo está muito longe de ser entendido numa perspectiva unívoca: pelo contrário, são diversas as definições dadas pelos diferentes especialistas em função de marcos conceptuais diversos.

As respostas dos diversos intervenientes no sistema educativo à questão do que se espera da avaliação das escolas do ensino básico e secundário são diversas, implicam fundamentos variados, dependem das preocupações de cada um (quer individualmente, quer dos órgãos a que pertence) e estão fortemente influenciadas pelos diferentes posicionamentos relativamente ao conceito de avaliação, aos modelos, aos instrumentos, aos processos, aos indicadores (explícitos ou implícitos), havendo até casos em que a própria existência da avaliação é posta em causa.

As diversas definições do termo “avaliação” tendem a posicionar-se ao longo de um continuum. Num dos pólos, fala-se de avaliação para se referir a actividade através da qual se emite um juízo sobre uma pessoa, uma situação, um objecto, em função de distintos critérios; no outro, sublinha-se a obtenção de informações úteis para tomar decisões. Na minha opinião, ambos os aspectos (o “juízo” e a “tomada de decisão”)

* Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa

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intervêm na avaliação educativa, adquirindo maior ou menor preponderância segundo as situações.

Considero a avaliação como uma actividade mediante a qual, em função de determinados critérios, se obtêm informações pertinentes acerca de um fenómeno, uma situação, um objecto, uma pessoa, se emite um juízo e se equacionam e adoptam uma série de decisões relativamente aos mesmos.

Qualquer que seja a definição que se eleja, a avaliação supõe sempre uma referência ao objecto avaliado (o sistema educativo no seu conjunto ou qualquer dos seus segmentos ou componentes) e aos critérios que se utilizam como referentes.

É sabido que estão em curso várias mudanças, nomeadamente a reorganização curricular no ensino básico (Decreto-Lei n.º 6/2001, de 18 de Janeiro), a revisão curricular no ensino secundário e que, neste momento, se cruzam resultados de diversas avaliações, desarticuladas, usando critérios, metodologias, instrumentos diferenciados, com referências a diferentes objectos, efectuadas nomeadamente pelo Gabinete de Avaliação Educacional, pela Inspecção Geral de Educação, pelo Departamento de Avaliação Prospectiva e Planeamento, bem como surgiram os resultados dos exames nacionais do 12º ano de escolaridade e os resultados de diversos estudos internacionais. Todas estas mudanças e todos os resultados das diversas avaliações têm tido impactos diferenciados nas escolas. A procura da qualidade ou das qualidades das escolas passa pela utilização dos resultados das avaliações como meio de apoio à reflexão das escolas sobre a própria acção. A avaliação deve ser cada vez mais considerada como instrumento indispensável à promoção da qualidade. Para tal, é determinante uma reflexão sobre os referentes que estão subjacentes a todo o trabalho de avaliação que fazemos, na procura da diversidade da qualidade ou das qualidades. A ligação entre as finalidades, os referenciais da referida qualidade(s) e a avaliação, é assim uma questão fundamental sobre a qual há que reflectir.

Temos de pensar num modelo de avaliação que equacione a complexidade da realidade e que seja propício à criação de uma dinâmica de transformação em cada uma das escolas através de uma avaliação pluralista, participativa, contextualizada (que tenha em conta o meio envolvente), dinâmica (que se reporte aos seus objectivos e à sua história) e integradora do conjunto de dimensões e de domínios. Para tal, é necessário incentivar:

a) uma cultura de reflexão/avaliação, quer ao nível institucional, quer pessoal;

b) uma ênfase no conhecimento estratégico, ou seja, na aprendizagem

auto-regulada, velando pela sua qualidade;

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c) uma credibilização da escola, nomeadamente pelos seus actores;

d) uma visibilidade e transparência dos resultados das diversas avaliações que

permita a auto-regulação das escolas;

e) um aprofundamento da ligação autonomia/avaliação;

f) a construção de um projecto de formação para os diversos agentes educativos,

entre outras.

Ao salientar estas finalidades e ao ter esperança que elas sejam progressivamente alcançadas, torna-se necessário apoiar as escolas no sentido de adoptarem formas de auto-avaliação não como um fim, em si mesmas, mas sim como um meio para atingir um fim encarado-as como uma parte integrante da organização escolar e do desenvolvimento curricular. Só assim podem ser portadoras de mudanças e podem permitir que, com todos os seus esforços, as escolas se vão auto-regulando, tornando-se assim comunidades reflexivas e criadoras de condições para se operarem as mudanças.

Permitam-me agora duas notas. A primeira, para enfatizar uma dimensão da(s) qualidade(s) de ensino que me parece dever ser privilegiada e equacionada como um dos referenciais da avaliação das escolas na procura da referida qualidade – a importância de apostar no conhecimento estratégico (através dos conteúdos, o que permitirá que os estudantes, no futuro , sejam capazes de aprender os conteúdos por si próprios), ou seja, aprender a auto-regular a aprendizagem. É indispensável proporcionar uma escola em que todos aprendam. Isto implica a necessidade de melhorar as práticas de ensino e de aprendizagem (e, para tal, há que repensar a formação de professores). A segunda nota, para dar conta de um conjunto de transições /mudanças de posição e de perspectiva que estão (ou não) a acontecer nas escolas e que têm de ser apoiadas para não terem efeitos perversos.

I. CONHECIMENTO ESTRATÉGICO:

UMA EXIGÊNCIA DA EDUCAÇÃO DO SÉCULO XXI

Se tivéssemos de eleger um lema que guie as metas e propósitos da escola do século XXI, sem dúvida que o mais referido entre educadores, investigadores, políticos que tomam decisões sobre a educação e intelectuais que reflectem sobre ela, seria o de que a educação tem de estar dirigida para ajudar os alunos a “aprender a aprender”. De facto, é difícil encontrar alguma reflexão sobre o futuro da educação, quer ela seja básica, secundária ou universitária e referida por professores, investigadores, profissionais do mundo de trabalho, que não afirme enfaticamente que uma das funções da educação futura deve ser a de promover a competência dos alunos em gerir os seus processos de aprendizagem, adoptar uma autonomia crescente no seu

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percurso académico e dispor de ferramentas intelectuais e sociais que lhes permitam uma aprendizagem contínua ao longo de toda a sua vida. Numa sociedade cada vez mais aberta e complexa, existe uma insistência crescente para que a educação deva estar dirigida para promover capacidades e competências e não só conhecimentos fechados ou técnicas programadas.

Deste ponto de vista, ou seja, ao defender a necessidade de desenvolver essas competências e/ou capacidades abertas, temos de situar a aprendizagem estratégica no centro de todo o projecto educativo (Veiga Simão A. M, 2001).

Nesta perspectiva, o século XXI “submeterá a educação a uma dura obrigação que poderá parecer, à primeira vista, quase contraditória. A educação deve transmitir, de facto, de uma forma maciça e eficaz, cada vez mais saberes e saber-fazer evolutivos, adaptados à civilização cognitiva, pois são as bases das competências do futuro. Simultaneamente, compete-lhe encontrar e assinalar as referências que impeçam as pessoas de ficar submergidas nas ondas de informações, mais ou menos efémeras. À educação cabe fornecer, de algum modo, a cartografia dum mundo complexo e constantemente agitado e, ao mesmo tempo, a bússola que permita navegar através dele” (UNESCO, 1996: 77).

Assim, perante a perspectiva desta nova civilização cognitiva na qual já estamos imersos, assume-se que os sistemas educativos deverão adoptar formatos e estruturas mais flexíveis e centrarem-se no desenvolvimento de competências transferíveis, já que “... o domínio do cognitivo e do informativo nos sistemas de produção torna um pouco obsoleta a noção de qualificação profissional e leva a que se dê muita importância à competência pessoal. O progresso técnico modifica, inevitavelmente, as qualificações exigidas pelos novos processos de produção. As tarefas puramente físicas são substituídas por tarefas de produção mais intelectuais, mais mentais, como o comando de máquinas, a sua manutenção e vigilância, ou por tarefas de concepção, de estudo, de organização, à medida que as máquinas se tornam, também, mais inteligentes e que o trabalho se desmaterializa (idem: 81). Em síntese, desde os âmbitos mais diversos e com as vozes mais variadas, exige-se uma nova forma de entender a escola, de forma a que ela se assuma como um centro de aprendizagem e de formação.

Convém recordar que, embora se tenha convertido num lugar comum, o conceito de “aprender a aprender”, até há muito pouco tempo, não se encontrava entre as metas prioritárias das decisões educativas e nos dias de hoje continua a não ser a finalidade essencial da instituição escolar e tem poucas repercussões no trabalho quotidiano da sala de aula. A simples repetição desta ideia “aprender a aprender” não leva por si

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só à consciencialização dos agentes educativos do que ela implica. Pelo contrário, e como tem sucedido com outros termos e conceitos, a sua repetição descontextualizada tem contribuído, por mero desgaste, para lhe retirar o significado.

Sem dúvida, não é suficiente que cada um acumule, no começo da sua vida escolar, uma elevada quantidade de conhecimentos. É necessário desenhar currículos que sirvam, não só para aprender, mas também para continuar a aprender. Isso requer mudanças que incidam sobre os conteúdos desse currículos e sobre a forma organizativa das instituições escolares, bem como sobre as concepções, atitudes e estratégias dos principais agentes da actividade educativa – os professores e os alunos. Por exemplo, é urgente reflectirmos sobre as nossas concepções sobre o saber. Segundo a Carta Magna (1998: 46) da Comissão Nacional para o Ano da Educação e Formação ao Longo da Vida, “há uma tendência antiga nas Escolas portuguesas, sobretudo no ensino secundário e superior, para considerar o saber como um conjunto de conhecimentos puramente intelectuais. Saber é meter na cabeça o que os livros dizem sobre as coisas. Pelo menos, é isso que se aprende nas escolas secundárias e nas universidades e é nesse sentido que se preparam os respectivos mestres. O saber não é isso. O saber irriga a personalidade inteira, dá-lhe capacidade para resolver situações dentro e fora de quem o possui e defende que “a observação científica e cultural – que implica actos de experimentação directa e execução prática – é a chave mestra de todo o saber”.

De facto, as mudanças curriculares, administrativas e psicopedagógicas estão sujeitas a inúmeras resistências. Promover essas novas metas educativas supõe reequacionar muitos dos propósitos educativos de todos os agentes da actividade educativa. Devemos assumir que as competências, os conteúdos e as formas organizativas da escola não são um fim em si mesmos, mas um meio, pelo que o seu valor educativo é relativo e não absoluto. Se queremos converter a aprendizagem estratégica numa realidade quotidiana das nossas escolas, é necessário não só justificar com clareza a sua necessidade social e pedagógica mas também estudar a maneira de a desenvolver através dos conteúdos culturalmente relevantes e a forma como essas novas exigências vão afectar o trabalho quotidiano de todos (alunos, professores, pais, psicólogos...).

II. ALGUNS SINAIS DAS TRANSIÇÕES

Gostaria agora de realçar alguns aspectos onde se têm vindo a notar algumas transições, quer pelas novas exigências curriculares, quer pelas reflexões que as escolas têm feito a partir dos resultados das avaliações de que têm sido alvo.

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Retomo aqui algumas das linhas de pensamento apresentadas no primeiro debate pela Professora Doutora Idália Sá-Chaves (2001). A primeira é sem dúvida a transição da ideia de singular para a ideia de plural, o que implica ultrapassar perspectivas de centração individualista e reconhecer o Outro como mais-valia na construção de colectivos mais responsáveis. Esta transição está patente na necessidade de cooperar, de trabalhar em equipa entre todas as instâncias do sistema educativo.

Podemos inferir alguns sinais dessa transição:

a) uma nova relação entre o poder central e as escolas na gestão do currículo nacional que é proporcionada pelo Decreto-Lei n.º 6/2001, de 18 de Janeiro; b) uma nova necessidade de construir um projecto educativo de escola em

parceria com todos os membros da comunidade educativa;

c) uma nova forma de articular os saberes, quer no interior dos departamentos disciplinares, quer entre eles, no sentido de procurar definir experiências de aprendizagem que conduzam ao desenvolvimento de competências transversais nos alunos;

d) a emergência do projecto curricular de turma, documento chave, que implica, para ser eficaz, uma cooperação entre todos os docentes da turma em todas as fases do processo (construção, concretização e avaliação);

e) uma outra concepção do binómio ensino-aprendizagem, valorizando a aprendizagem cooperativa e a construção de saberes em conjunto com outros e rentabilizando todo o tipo de saberes;

f) uma parceria com todos os elementos da Comunidade Educativa na procura de soluções.

Uma outra questão que nos parece merecer grande acuidade e que poderá vir a contribuir para o sucesso da reorganização curricular é a transição da ideia de acção tutelada para a ideia de acção emancipada.

São notórios os esforços, em algumas escolas, com a finalidade de que todos os estudantes acedam a um ensino de melhor qualidade. Para isso, há que transitar de uma perspectiva centrada no ensino para uma perspectiva centrada na aprendizagem, se se deseja elevar ao máximo os níveis de aprendizagem, motivação e rendimento de todos os que participam neste processo, tanto alunos como professores.

A reflexão que fomos fazendo leva-nos a equacionar a importância de se trabalhar ao nível da instituição escolar. Docentes, pais, responsáveis pela educação têm

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mostrado a sua insatisfação com uma perspectiva de ensino exclusivamente como acumulação de conhecimentos e consideram ser decisivo dotar os alunos de ferramentas que os ajudem a enfrentar a construção de saberes. Esta preocupação tem de ser interiorizada pelos diversos actores da instituição escolar, passando a fazer parte integrante dos seus projectos educativos a necessidade de fazer da escolarização um processo de aprendizagem que forneça aos cidadãos os instrumentos adequados, para uma contínua aprendizagem ao longo da vida.

Mas como? Várias são as dificuldades para a concretização da finalidade referida. Dificuldades que exigem, entre outras coisas, um apoio aos professores na tarefa de ensinar os seus alunos a aprender estrategicamente. Por exemplo, a área curricular não disciplinar do estudo acompanhado, ao ser equacionada como um espaço de ajuda à transição de um processo de controlo externo, centrado no professor, para uma auto-regulação interna, centrada no aluno, vem exigir que os professores sejam capazes de aprender e ensinar estrategicamente os conteúdos curriculares.

Nesta concepção, o professor tem de aprender os conteúdos da sua disciplina de forma estratégica e metacognitiva para poder ensinar o aluno a aprender, utilizando uma metodologia de ensino que favoreça a transferência reflexiva de procedimentos de aprendizagem. Mesmo quando os professores reconhecem a importância de ensinar também competências que permitam aos alunos desempenhar um papel mais activo e autónomo no tratamento da informação, na realização das tarefas escolares, no cumprimento das tarefas escolares, no cumprimento das tarefas desenvolvidas na sala de aula ou no estudo privado, não sabem frequentemente como ensiná-las. Nesta óptica, é necessário optar por estratégias formativas de professores que possam ser isómorficas com a prática profissional e que procurem “andaimar” o processo de desenvolvimento dos professores e destes com os seus alunos.

Por outro lado, gostava ainda de sublinhar que a problemática da autonomia é fundamental para a transição da ênfase no discurso para a ênfase na acção. A questão que se coloca prende-se com saber de que forma o professor pode exercer a mediação e a cedência dos próprios dispositivos de aprendizagem e como essa forma de fazer a mediação se repercute num ou noutro sentido, nas competências de auto-regulação que o estudante pode chegar a desenvolver.

Para tal, é fundamental a transição de uma cultura de avaliação classificativa para uma cultura de avaliação compreensiva. Isto implica a necessidade de repensar os sistemas de avaliação, quer no seu desenho, quer na análise crítica dos resultados. Assim, são

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fundamentais os instrumentos que ajudem a regulação dos processos e dos percursos de aprendizagem e de formação. Uma outra transição essencial prende-se com a passagem de uma lógica disciplinar para uma lógica transdisciplinar. Uma das áreas de reflexão relaciona-se então com a articulação entre os domínios conceptuais que organizam o currículo (matemática, línguas, ciências, história...) e o domínio estratégico que pode ou não ter uma entidade e organização escolar própria e que se assumiria como um eixo transversal às áreas tradicionais do currículo. Têm surgido diversas propostas de intervenção: umas, integradas nas disciplinas, outras através da criação de salas de estudo; mais recentemente, surgiu a área curricular não disciplinar Estudo Acompanhado. Será, portanto, importante analisar o impacto destas opções nas aprendizagens dos alunos e é essencial reflectir sobre as resistências às mudanças que elas operam ao nível da instituição escolar.

No que se refere à articulação entre as áreas disciplinares e as áreas curriculares não disciplinares, encontrámos, nas escolas, formas diversificadas de a equacionar. As respostas que as escolas têm encontrado são certamente variadas e dependem, em grande medida, das suas dinâmicas, dos seus projectos de formação, das suas condições e dos envolvimentos anteriores em projectos. Contudo, e de forma necessariamente muito geral, é possível perfilhar algumas propostas que se traduzem em diferentes formatos organizativos:

a) umas, centradas no “ensinante”, partindo das competências gerais articulando-as com as operacionalizações específicas de cada disciplina, decorrendo daí o que se desenvolve nas áreas disciplinares não curriculares: uma articulação virada a pensar as novas áreas como tempos de apoio às disciplinas, ao ensino das disciplinas (por exemplo, quando os professores detectam dificuldades ao nível dos procedimentos ou de competências remetem o seu ensino explícito para as novas áreas curriculares);

b) outras, centradas no “aprendente”, partindo dos interesses e necessidades dos estudantes (nomeadamente para acompanhar as diferentes disciplinas), e articular com as diferentes disciplinas, em momentos diversos com ritmos diversos, recorrendo a conteúdos que se estão a desenvolver ou que já foram trabalhados anteriormente ou que serão objecto de ensino posterior e recorrendo a metodologias/estratégias gerais ou específicas.

Creio que se torna necessário um cuidado extremo com os modos e os tempos que vão ser usados nas transformações, porque, se não forem adequados, podem, por essa via, provocar o insucesso de uma ideia com potencialidade e que podia

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contribuir para assegurar que todos os alunos aprendam mais e de um modo mais significativo. Concluindo, gostaria de realçar que a avaliação (em planos diferenciados e atendendo a diferentes objectos) deve ter em consideração este conjunto de aspectos que podem ser equacionados como alguns dos referentes da qualidade ou qualidades.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FIGARI, G. (1992). Para uma Referencialização das Práticas de Avaliação dos Estabelecimentos de Ensino, in A. ESTRELA e A. NÓVOA, eds. Avaliações em Educação, Novas Perspectivas. Lisboa: Educa, 15-72. VEIGA SIMÃO, A. M. (2001) A aprendizagem estratégica. Construção e avaliação de uma intervenção em estratégias de aprendizagem integrada no currículo escolar, Dissertação de Doutoramento em Desenvolvimento Curricular e Avaliação da Educação. Lisboa: Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa (policopiado). VEIGA SIMÃO, J. (coord.) (1998) Educação e Formação ao Longo da Vida, Carta Magna. Comissão Nacional para o Ano da Educação e Formação ao Longo da Vida, Lisboa. UNESCO (1996) Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI. Delors,

J. (coord.), Educação um tesouro a descobrir. Porto: Edições ASA.

PARA ALÉM DA QUALIDADEOU EM VEZ DA QUALIDADE

ABÍLIO AMIGUINHO*

Gostaria de dizer que a minha intervenção se compõe basicamente de duas partes: uma primeira parte, em que, sem querer abordar a questão da qualidade como a questão principal, não deixarei de andar à volta dela e, uma segunda parte, onde me centrarei na minha experiência e, portanto, na intervenção em que estou envolvido e que coordeno. Julgo que cabe aqui referi-la, quanto mais não seja numa modesta intenção de poder trazer para o debate outros conceitos, outros princípios, outros valores, como preferirem, que não apenas o da qualidade. Perante o convite que me foi endereçado para participar num painel que tem por título a construção da qualidade na escola, questionei-me sobre o modo como me haveria de posicionar na abordagem do tema, dadas as reservas, e mesmo o desconforto, que o mesmo me suscita. Desconforto que, julgo, advém de alguma dificuldade em identificar-me tanto em termos de valores, como ideologicamente, como, ainda, no que se refere a concepções e a práticas sobre esta questão da qualidade.

Interroguei-me sobre o que fazer e, então, pensei que ignorar, passando ao lado do que considero criticável e constitui as razões de maiores reservas, era provavelmente uma atitude que não seria a melhor e não me ficaria bem se optasse apenas por me centrar na minha intervenção nos princípios e nas lógicas que julgo que as orientam, para depois produzir ou apresentar aqui a reflexão que tenho vindo a desenvolver sobre ela.

Então, como optei por não passar ao lado, ou não querendo passar ao lado, talvez pudesse – se o tempo o permitisse – tratar desta questão da qualidade sobretudo evocando aqui as críticas no que se refere à definição do conceito, mas muito mais do que isso, poderia também desenvolver as questões que dizem respeito ao seu uso e abuso. Provavelmente, aí, teria um campo impressionante de trabalho de análise

* Escola Superior de Educação de Portalegre

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para ver como a questão da qualidade integra qualquer peça, das piores às melhores, da retórica política e sobretudo em termos de reforma. Talvez por isso tenha vindo a ser um dos termos que mais tem servido para constituir aquilo que alguns muito recentemente têm vindo a chamar o “mito da reforma”. Esta é uma questão, entre outras, é certo, que fez com que, segundo João Barroso, se possa falar cada vez mais “do mito da reforma” e da “reforma de um mito”.

Quanto à definição, poder-vos-ia falar da pouca clareza do conceito de qualidade ou da qualidade como simples bandeira das reformas, sobretudo em períodos em que já se atingiu um determinado nível de escolarização e se considera a questão da quantidade resolvida. A qualidade, ou a questão da qualidade, ou da defesa da qualidade, é assumida como uma espécie de fuga para a frente, nomeadamente quando se considera que o debate educativo está encerrado. Ora, poderíamos facilmente reconhecer que ainda há bastante para discutir e reflectir, nomeadamente se tivermos em conta concepções do ensino/aprendizagem, de formação e de socialização dos professores e alunos, de formas de relacionamento da escola com o exterior e com o meio envolvente, do modo de servir e intervir no contexto local. São concepções e, principalmente, práticas sobre as quais considero que o debate não está encerrado, de maneira nenhuma.

Diria mesmo que até um livro que anda nas bocas do mundo, “Educação: Um Tesouro a Descobrir”, parte de facto deste pressuposto, o que é preciso é, simplesmente, descobrir o tesouro que a educação é.

Poder-vos-ia continuar a falar desta questão da qualidade; como ela ignora as questões sociais do serviço público; como ela é defendida, sem excepção mas sem clarificação, pela esquerda e direita, e se centra fundamentalmente na análise, economicista, do custo-benefício. O tema preside à análise dos produtos educativos e podia, se calhar, até para terminar, cotejar um conjunto de exemplos retirados da política dum governo provavelmente insuspeito, como é o governo trabalhista em Inglaterra, inseridos no jornal “Público”. Não sei se as jornalistas do “Público” têm algum contrato no sentido de denunciar estes factos. Mas alguns deles são elucidativos, designadamente sobre a forma como a sacrossanta qualidade induziu a problemática e a política dos rankings das escolas. Revelam como isso deu azo às práticas mais perversas, desde professores do ensino primário que foram processados criminalmente por terem aldrabado os resultados dos exames para que a escola pudesse subir no ranking, ao recrutamento de professores no supermercado, ou à ironia dos professores que publicamente denunciaram a desgraça em que a sua escola caiu, por ser frequentada apenas por meninos de fraco aproveitamento

PARA ALÉM DA QUALIDADEOU EM VEZ DA QUALIDADE

escolar e indisciplinados, porque todos os outros, por decisão dos pais, já abandonaram a escola à procura de outra de mais qualidade.

É evidente que todo este conjunto de situações levou a que alguns autores, sobretudo na década de 90, com os quais mais nos identificamos, e que mais preocupados estão com estas questões da inovação – estou-me a lembrar-me de Louise Stoll ou David Hopkins – passassem a utilizar estas questões da qualidade nomeadamente em projectos como IQEA, de David Hopkins e dos seus companheiros, em que a qualidade aparece como que retocada. Sobretudo porque, a partir de determinado momento, para reagir ao uso e abuso da questão da qualidade, continuando a falar de eficácia, introduziram o problema da “qualidade para todos”. Aqui talvez já não tenha tanta dificuldade em rever-me em alguns princípios orientadores, e metas a atingir, no que designam de projectos de incremento da qualidade da educação para todos.

Aí somos capazes de encontrar coisas deste estilo, por exemplo: a escola do futuro deve ser resultado da contribuição de todos os membros da comunidade escolar; as pressões externas, e nomeadamente, as reformas devem ser encaradas como oportunidades para melhorar as prioridades internas, e não tanto como desígnios produzidos de cima para baixo, para criar e manter as condições para que todos os membros da comunidade escolar aprendam; a necessidade de adoptar e desenvolver estruturas que promovam a cooperação e o fortalecimento de indivíduos e grupos; e, um quinto princípio, que é a promoção da ideia de que o controlo e a avaliação da qualidade é da responsabilidade de todo o seu professorado.

Eu tenho a impressão de que nós, em Portugal, também tivemos um pouco da influência destes princípios quando, no final dos anos 90, registámos entre nós provavelmente uma réplica serôdia deste tipo intervenção, como foi o PEPT 2000 que, do meu ponto de vista, devo confessar, foi uma boa plataforma de indução de projectos nas escolas e eu tive a oportunidade de participar nalguns deles. De qualquer modo, esta perspectiva da educação de qualidade para todos não deve ser confundida, como aconteceu aqui ao lado, na vizinha Espanha, com a da qualidade total, que ainda provocava mais apreensão e desconforto do que simplesmente a qualidade. Então já não era a qualidade era a qualidade total, supostamente em toda a parte onde estivéssemos.

Mas, dizia eu que esta ideia da qualidade para todos evocava também uma outra que era a questão da formação e da socialização de professores e alunos como variáveis fundamentais deste processo, e referia-se, em relação aos alunos, a questão do pensamento crítico, das capacidades de aprendizagem e da auto-estima, e em

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relação aos professores uma maior sensibilidade com a realidade, oportunidades de aprendizagem profissional, aumento da gestão da responsabilidade, por aí fora.

Estes princípios de uma qualidade para todos falavam da necessidade de procurar estratégias poderosas para promover a inovação e, sobretudo, de aproveitar os momentos de desestabilização na escola e nos contextos educativos em geral, de desestabilização ou turbulência, como momentos altamente profícuos de criação e de inovação.

Encontramos isso também noutros autores, nomeadamente Lise Demailly, que diz que, na escola, quando as coisas ficam mais turbulentas e se desestabilizam, é quando os professores põem à prova tudo o que intervém na sua profissionalidade. Há, efectivamente, da parte destes autores um esforço que julgo louvável, sobretudo em contextos tremendamente adversos, no sentido de alguns deles procurarem articular as velhas narrativas de school improvement com as teorias sobre a eficácia e as ideias sobre a eficácia. É uma síntese que, apesar de tudo, tentaram, desenvolvendo também esta ideia, que é uma ideia que me agrada e que tem sido referencial na minha prática, na minha intervenção, a da necessidade de que se rompam as situações de escolas como autênticas fortalezas contra o exterior, um pouco no sentido de, como agora se diz, procurar reconciliar com a escola os pais, os professores e a comunidade, que é talvez um desígnio de criar um novo sentido para a escola e para o trabalho escolar.

Mas, como dizia, apesar de me rever em alguma desta evolução do conceito de qualidade e nas potencialidades que existem nestes princípios, nesta ideia da qualidade para todos, continuo a ter as minhas reservas e as minhas dúvidas sobre a qualidade. Com a palavra e a coisa, que não sei muito bem qual é, tenho alguma dificuldade em integrá-las no meu léxico.

Vou agora centrar-me mais em alguns exemplos da minha intervenção que se baseiam numa defesa da escola, já não tanto como um serviço público abstractamente conceptualizado, mas um serviço mais localmente situado, aquilo que pensava ser afinal o tema que queriam que eu desenvolvesse quando me formularam o convite.

E iria começar por referir uma série de exemplos dum projecto de intervenção que desenvolvemos em meio rural que leva já uma década de existência, de que provavelmente alguns dos presentes já me ouviram falar. Aliás, em 1995, o Conselho Nacional de Educação concedeu-me o privilégio para sobre ele falar num debate sobre educação e desenvolvimento em meio rural. Aí tive a oportunidade de

PARA ALÉM DA QUALIDADEOU EM VEZ DA QUALIDADE

fornecer um testemunho sobre aquilo que estava a viver intensamente. Apenas tinham passado quatro anos depois de o termos iniciado. Ora, agora, passaram dez e, então, o entusiasmo cresceu e provavelmente até fui capaz de me ter tornado muito mais ecológico-romântico do que já era na altura, como também nos apelidam. Mas, enfim, eu devo confessar que não me importo absolutamente nada. Longe de considerar isso como uma crítica infundada, considero que é um elogio. Passaria a citar alguns exemplos de subprojectos ou de acções, desta intervenção. Peço desculpa porque alguns deles poderão parecer demasiadamente pueris ou de muito pouco significado, mas um autor que eu já li há muitos anos dizia que os inovadores têm que ser humildes porque nunca chegam a parte alguma se o não forem. E de maneira que aí vou.

Um primeiro exemplo diz respeito a um trabalho feito por três escolas em cujas aldeias de repente desapareceu o carteiro, assim muito misteriosamente. Depois de ter desaparecido muito coisa, desapareceu também o carteiro. De modo que as três aldeias juntaram-se e, através de um trabalho que uniu as escolas e a comunidade, partiram à procura do carteiro. E o carteiro voltou. Não vos digo mais por agora, posso dizer mais coisas a seguir.

O outro exemplo diz respeito à construção de um centro comunitário, a partir da constatação de que a escola, que até ali tinha duas salas de aula, só já tinha alunos para os “arrumar” a um canto de uma delas. Então pensou-se que talvez fosse oportuno arranjar uma forma de ocupar a outra sala. Foi assim que, por iniciativa da escola se criou um “Grupo de Gerações Unidas para o Desenvolvimento de Ouguela” (GUDO), que é o nome da terra. Tem cem habitantes, fica ao lado de Campo Maior, a terra dos cafés Delta, e, sendo este grupo constituído por idosos, crianças, professores, outros elementos da comunidade lançaram mãos à obra, conseguiram transformar a sala vazia de alunos, primeiramente num centro de dia, mais tarde num centro comunitário e, depois mais tarde, ainda, surgiu um projecto com fundos europeus da Santa Casa da Misericórdia que se chamava “Projecto de revitalização da Comunidade de Ouguela”. Quando acabaram os dinheiros europeus, o projecto ficou sem animador mas rapidamente a escola se tornou outra vez em principal fonte de animação. Hoje, perguntando aos meninos, num trabalho de investigação, o que é que evocava o termo escola, em vez de referirem escola, dizem centro comunitário o que, de alguma forma, elucida bem sobre o que é que está por trás disto.

O outro exemplo é o da pré-primária de Degolados, uma terra ao lado com a qual aquela faz intercâmbio. Não havia jardim infantil na terra, de maneira que, apercebendo-se os alunos na escola que havia uns que já tinham um percurso de pré

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escolar e colocando-se a professora neste processo, construíram um projecto que posteriormente apresentaram aos pais e que viria a envolver autarquias, autoridades educativas locais e que culminou com a criação de um Jardim de Infância. Foi instalado numa casa tradicional de dois pisos, toda ela pensada em termos de segurança para que as crianças tivessem acesso ao piso de cima. Logo depois, embora antes se pensasse que não havia meninos para a pré-primária, apareceram tantos que já não cabiam naquela casa e tiveram que ir para uma sala de aula que entretanto tinha ficado vazia de alunos do 1.º ciclo do ensino básico. É este o terceiro exemplo.

Um outro diz respeito à criação de uma Casa Museu numa outra localidade e é mais recente. Tendo-se o percurso iniciado há sete anos atrás, culminou agora com a inauguração da Casa Museu. Começou de facto com uma perspectiva de recolha dos valores locais, num registo de confronto da cultura local com a cultura escolar. A afluência de peças e de materiais, sendo a notificação do registo das mesmas feito pelas crianças em trabalho escolar, veio a dar origem à criação de uma casa museu que hoje está instalada e de uma forma que também registo agradavelmente. Está devidamente sinalizada nas placas toponímicas da aldeia que, de alguma forma, também dá uma indicação de como o serviço em si foi acolhido pela comunidade.

Depois, queria também falar de um outro projecto que me parece extremamente interessante. Também tivemos a felicidade de trabalharmos com uma aldeia, que deu o nome aos bonecos de Santo Aleixo – quem é que não ouviu falar já – e, então, lá vai a escola à procura de onde é que estão os bonecos. Afinal de contas os bonecos são de Santo Aleixo ou não são de Santo Aleixo. Toda a gente sabe como é que estas rivalidades se colocam entre aldeias. Muitos diziam que os Bonecos têm o nome da aldeia mas são de São Romão, outros diziam que são de Borba, outros diziam que são de Orada. Grande confusão e as crianças no meio à procura do verdadeiro significado das marionetas e desta importante tradição de teatro popular.

Claro está que, da mesma forma, a proliferação de materiais recolhidos foi dando origem a um espólio que hoje se pretende venha a constituir (e os passos estão dados porque já existe muito material) uma Oficina Museu de Marionetas em termos locais, onde julgo que é notória a acção da escola.

Por último, um centro multiusos, um centro multifuncional, designação que utilizo na mesma linha da utilizada por um sociólogo que se tem dedicado bastante a estas questões das pequenas estruturas escolares em meio rural. Trata-se do sociólogo João Ferrão que também trabalhou para o PEPT. O projecto corresponde a uma intenção da autarquia, que tinha visto o centro cultural local transformado numa

PARA ALÉM DA QUALIDADEOU EM VEZ DA QUALIDADE

tasca, e pediu auxílio à escola para transformar aquilo numa coisa útil. A escola pensou que talvez pudesse ajudar inventariando um conjunto de sugestões da própria escola, mas também da comunidade e depois visitando outros serviços com características semelhantes para fazer uma proposta ao Presidente da Câmara. O que é facto é que a fez e, neste momento, as obras decorrem e em breve estará instalado este centro multiusos.

Termino aqui os exemplos. É evidente que foram apenas pequenos lamirés acerca de cada uma destas coisas, permitam-me chamar-lhes assim. Não sei se o consegui mas, de qualquer maneira, era minha intenção sublinhar a intencionalidade que está por trás destas iniciativas, tanto em termos de trabalho pedagógico como em termos de intervenção comunitária, num registo que nós gostamos de designar por globalização da acção educativa, tanto em termos de dimensões que ela invoca ou que envolve ou de actores implicados.

Esta intervenção comunitária, do nosso ponto de vista, remete grandemente e orienta-se no sentido da produção de práticas de formação informal e de processos de animação e desenvolvimento local. Claro está que há a cruzar tudo isto um processo de produção de parcerias ou de criação de parcerias de grau e de intensidade variáveis.

Chegados a este ponto, o que tem tudo isto a ver com qualidade ou com construção da dita?

Socorro-me do trabalho de Manuel Sarmento, trabalho que se chama justamente lógicas da acção na escola, para, no cruzamento de lógicas de intervenção que invoca fazer a leitura destas práticas e, porventura, continuar a encaminhá-las ou a direccioná-las.

Julgo que é possível descobrir e identificar nessas práticas, em primeiro lugar, uma lógica do desenvolvimento local, em segundo lugar, uma lógica do direito das crianças e, em terceiro lugar, uma lógica de profissionalidade.

Penso, também, que é possível, como faz o autor, articular estas lógicas com a promoção de outros valores e, assim, ao desenvolvimento local corresponderia um valor do desenvolvimento comunitário, ao direito das crianças, o da equidade, e ao da profissionalidade, o da autonomia profissional.

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Considero que não há aqui muito campo para falar de eficácia ou de construção da qualidade, pelo menos nos termos em que temos vindo a assistir a esta discussão ou a ausência dele.

O meu tempo está a esgotar-se mas gostaria de dizer mais duas ou três coisas sobre cada uma destas combinatórias – lógicas de acção e promoção de valores. Em relação ao caso do desenvolvimento local, o argumento de Sarmento remete para esta ideia de que a escola no desenvolvimento local tem muito a ver com a promoção dos valores locais, com a realização de textos, com a recuperação de práticas de trabalho, com o reavivar de formas de sociabilidade. Julgo que, dos exemplos que vos dei, há material e elementos que podiam talvez ampliar esta análise em torno das questões de desenvolvimento local, para dizer que também há desenvolvimento local quando há contributos para a solução de problemas locais, nomeadamente, centros comunitários que tanta falta fazem em comunidades isoladas; centros de dia, em comunidades profundamente envelhecidas; museus locais, mais nesta perspectiva da promoção dos valores locais, mas também há desenvolvimento local quando a escola contribui para a promoção de parcerias ou participa na criação de serviços. Talvez possa fazer aqui uma pequena ponte com os autores que defendem projectos centrados na construção da qualidade para todos, nomeadamente afirmando que há aqui elementos para quebrar a fortaleza que a escola é.

Em relação ao direito das crianças e da equidade, este é talvez o aspecto mais controverso porque algumas destas escolas têm meia dúzia de alunos. Para alguns não é um direito das crianças manterem-se numa escola com cinco ou seis alunos. Se forem cinco, ainda dá para fazer uma equipa de futebol de salão, mas se forem menos nem sequer para isso dá. Consideram que não é possível socializar as crianças e desenvolver a cidadania em meios como estes. Mas também me ocorre perguntar: não é possível pensar noutras práticas de socialização, sobretudo com crianças de diferentes níveis etários, trabalhando no mesmo espaço, com uma heterogeneidade de actores no acto educativo, nomeadamente idosos, famílias e outras autoridades? Não há aqui outro ambiente de socialização ou outros agentes de socialização? E não há aqui também a oportunidade, como considera David Hopkins, para outras formas de desenvolver o pensamento crítico nas crianças? Parece-me que há aqui, claramente, oportunidades para que haja uma outra formação do espírito crítico.

Finalmente, sobre a profissionalidade/autonomia profissional, também na linha do que considera Hopkins, quanto à desestabilização e turbulência criadoras, há aqui situações e práticas que põem à prova a tradicional gramática do exercício escolar, porventura fazendo dos professores agentes de desenvolvimento local. Do meu ponto de vista, tal não pode ser considerado como mais uma forma de intensificação

PARA ALÉM DA QUALIDADEOU EM VEZ DA QUALIDADE

do trabalho, que é uma das críticas que temos vindo a receber. É que há também oportunidades para construir saberes pedagógicos que advêm da intervenção local e não de peritos. São construídos no acto de intervir. São saberes que Lise Demailly, por exemplo, considera de difícil verbalização e, mais ainda, de comunicação. Mas o que é facto é que estão integrados, ou podem vir a sê-lo, na cultura profissional. Para terminar, queria, então, deixar esta pergunta: será que – modestamente, já se vê

consegui dar um contributo – não sei se positivo se negativo – para alargar o debate, fazendo com que ele saia deste âmbito ou deste registo, que me parece algo redutor, da construção da qualidade da escola? Deixo a pergunta.

Comentários

MARIA DA CONCEIÇÃO ALVES PINTO*

Antes de mais quero congratular-me com esta oportunidade de reflectirmos, em termos do Conselho Nacional de Educação, sobre a problemática da qualidade em educação e particularmente com o interesse e com a resposta que houve por parte das escolas.

Gostaria de começar por afirmar uma perplexidade: estamos aqui para reflectir sobre a qualidade em educação, mas ninguém sabe de forma clara o que isso é para o conjunto de pessoas que aqui estão. Afinal o que é a qualidade? A resposta a esta questão é já por si um problema uma vez que a complexidade é grande.

Quando lemos a Lei de Bases, tal como o Professor Viegas de Abreu acaba de fazer, encontramos a formulação de uma conjunto de objectivos da educação. Admitamos que a qualidade se deverá equacionar com o referencial da Lei de Bases. A grande questão que surge, então, é a de saber, de entre os objectivos que a lei consagra, de quais estamos concretamente a falar e particularmente que hierarquia damos a esses objectivos. Com efeito, quando se conjuga a qualidade com a avaliação, não nos podemos deter numa formulação de princípios, onde uma grande variedade de objectivos podem ser considerados simultaneamente, mas somos obrigados a, senão seleccionar, pelo menos hierarquizar os objectivos em torno dos quais se definirá a qualidade e que orientará a avaliação.

Não se pode falar de qualidade da educação como se de um conceito claro se tratasse. Aliás, a necessidade de clarificação desta problemática está patente na ambiguidade e confusão que se constata aquando da apresentação de resultados do que tem sido apresentado como avaliações da educação. Quando nos confrontamos com dados como, por um lado, os do ranking das escolas a partir das notas dos alunos do secundário, por outro, do estudo da literacia ou, por outro ainda, do projecto PISA sentimos necessidade de maior clarificação do que é que foi retido como parâmetro de avaliação. E estes parâmetros acabam por funcionar como indicadores de qualidade.

Num esforço de delimitar o que se entende por qualidade de educação, debrucei-me sobre o “Rapport Européen sur la qualité de l’éducation scolaire: seize indicateurs de qualité”. Uma leitura atenta destes indicadores dá-nos uma ideia do fosso enorme que separa os objectivos da Lei de Bases, referidos pelo prof. Viegas de Abreu, e os indicadores que delimitam o que se vai ver da realidade da educação em cada país.

*FNE - Federação Nacional de Educação

Falar de qualidade em educação sem nos pormos de acordo sobre o que se entende por isso, pode ser uma forma de negar, na prática, tudo aquilo que tem sido a evolução da nossa política educativa, em termos de textos fundamentais, que quer pôr a pessoa no centro da política educativa.

Dito por outras palavras, uma verdadeira reflexão sobre a qualidade e avaliação da educação coloca diante de nós a questão: qual é, afinal, o objectivo da política educativa? Admitamos que a qualidade de educação é algo que se pretende atingir. Mas qualidade DE QUÊ? Como O QUÊ não está explicitado, cada um aí mete o que lhe está na cabeça. Para uns será a qualidade da selecção (natural!...) dos melhores em termos de resultados de exames nacionais, para outros será a «avaliação de competências», para outros serão ainda outras coisas. E todos e cada um terão textos legais que legitimam o conteúdo que dão à qualidade e à avaliação.

Admitindo que a qualidade seja o objectivo da política educativa, uma vez que esta só se concretiza em processos decisionais, somos levados a procurar ser lúcidos sobre o que é que se decide, com que critérios, como se processa a implementação dessas decisões e como se avaliam os resultados efectivamente atingidos.

Quem é que avalia a prossecução dos diferentes objectivos da Lei de Bases? Podemos não conseguir todos, mas como é que se hierarquizam?

Quem avalia, por exemplo, a equidade ou a igualdade do cidadão português face a uma escolaridade de qualidade? Quem se preocupa com os adolescentes que vão ficando pelo caminho?

No Programa PISA, quando apenas se analisam os alunos com quinze anos que frequentam o 10.º ano, os alunos portugueses não têm prestações inferiores aos dos outros países. O problema são todos aqueles jovens que foram ficando retidos pelo caminho. Que olhar é que nós temos tido para todos estes que ficam pelo caminho? Seremos capazes de, ao olhar para o flagelo do “abandono escolar”, interrogar as medidas de política educativa, a organização dos programas e do ensino? A análise desta situação supõe, por exemplo, encarar de frente o que persiste do processo da unificação pela licealização do 3.º ciclo. Continuamos com programas e com um ensino em que o primado é dado à teoria, em que predominantemente primeiro se apresenta a teoria e depois se aplica. Ora esta sequência só é adaptada a uma parte dos adolescentes. Muitos outros precisam de entrar no processo de aprendizagem pela aplicação e então estarão em condições para compreender a teoria que está subjacente a essa aplicação. E muitos destes outros adolescentes começam por ficar retidos e depois por ficar pelo caminho. Mas encontrar respostas para este problema, supõe muito mais do que meros processos de avaliação ou de promulgação de medidas legislativas.

E não podemos tratar da qualidade da e na educação sem falar da pilotagem do sistema, ou seja, dos processos de decisão política e de administração central e regional. Que distinção existe na cabeça de quem decide entre a pilotagem do sistema, o controlo do sistema e a melhoria das escolas?

Faz-se avaliação das escolas, algumas escolas fazem a auto-avaliação e outras experimentam a hetero-avaliação. Os dados dessas avaliações permitem caracterizar os pontos fracos, os pontos fortes, os bloqueios, etc. E depois não há continuidade. Fica-se a conhecer o estado da escola, só que muitas das escolas não têm meios para tirar proveito do diagnóstico feito, e de conseguir sozinhas melhorar a situação em que se encontram. Donde é que vêm os apoios para que a escola possa, uma vez feito

o diagnóstico, quando foi feito, encontrar as suas vias de atingir maior qualidade? Dito de outro modo, não são só as escolas que têm de ser objecto de avaliação da qualidade. Há uma série de aspectos, nomeadamente do enquadramento da política educativa e de administração no sector da educação, que têm, também por sua vez, de ser objecto de avaliação da sua qualidade. E estou a falar nomeadamente no funcionamento das Administrações Regionais e sua articulação com as escolas.

ALMERINDO JANELA AFONSO*

OProfessor Viegas Abreu começou por dizer que a avaliação da qualidade não é uma questão independente dos constrangimentos de natureza orçamental. Também disse que a avaliação da qualidade é uma «moda» recente. Tendo a concordar genericamente com esta perspectiva, mas acrescentaria que é necessário procurar outras razões que podem elucidar a actualidade da questão da avaliação e, mais especificamente, o que se tem designado como avaliação da qualidade em educação.

Numa época de globalização acelerada e de protagonismo crescente de instâncias supra-nacionais, como é o caso da União Europeia, há condicionantes novas que pesam sobre os sistemas educativos nacionais, as quais, por sua vez, encontram expressão na formulação das políticas educativas e avaliativas, ainda que isso se passe de uma forma que está longe de ser mimética ou sincrónica quando confrontamos o nosso país com outros.

Independentemente da análise das especificidades portuguesas, que subsistem aquém e para além das condicionantes que acabei de referir, o que é notório é que, entre nós, as políticas educativas e avaliativas têm igualmente sido legitimadas por discursos que, implícita ou explicitamente, tomam como referência as mudanças educativas em países mais avançados e onde surgiram mais cedo as discussões que agora começam a generalizar-se em Portugal. É, por isso, necessário olhar mais de perto a natureza e a génese destes discursos.

A partir dos anos oitenta, assistimos em muitos países centrais (inicialmente nos EUA e na Inglaterra) à emergência de um movimento neoconservador e neoliberal que alcançou o poder de governação e que, como seria de esperar, introduziu alterações profundas nas políticas públicas e educativas.

Estas políticas da chamada «nova direita» elegeram a educação pública como um dos alvos prioritários da sua crítica. Pelo lado dos (neo)liberais, a educação pública foi acusada de não funcionar adequadamente por não estar a preparar os alunos para as supostas necessidades dos mercados de trabalho e da competitividade decorrentes de uma internacionalização crescente da economia capitalista. Pelo lado dos (neo)conservadores, entre muitos outros factores, os programas e os métodos de ensino voltaram a ser vistos como factores explicativos dos baixos resultados escolares, tendendo igualmente a atribuir-se às pedagogias não-directivas, e ao

*Instituto de Educação e Psicologia da Universidade do Minho

suposto mau uso da autonomia profissional dos professores, a perda de qualidade da educação escolar pública. Haveria, portanto, que repor a velha ordem escolar, levando os professores a reassumir a sua autoridade, para lhes permitir passar a exigir padrões de desempenho mais elevados, mais competitivos e mais quantificáveis e mensuráveis. Nada melhor que retomar a avaliação externa como mecanismo de “controlo da qualidade” das escolas e dos professores.

Neste novo contexto, as políticas da “nova direita” conseguem compatibilizar uma presença mais forte do Estado com a revalorização dos mecanismos de mercado. O Estado torna-se mais presente quando (re)centraliza as decisões mais expressivas em termos de programas, currículos e modalidades de avaliação; a ideologia de mercado torna-se mais eficaz quando o Estado cede às pressões para uma crescente privatização da educação escolar, incentiva a competição e liberdade de escolha, e permite a comparação das escolas através da publicitação de rankings estabelecidos com base nos resultados de exames nacionais ou em outras formas de avaliação externa.

Num primeiro momento, e com excepção do que ocorreu em Portugal a partir de meados dos anos oitenta com a expansão do ensino superior privado e a criação das “escolas profissionais”, a emergência do movimento neoconservador e neoliberal, com origem em alguns países centrais, passou relativamente despercebida entre nós. Muitas das propostas de reforma educativa nessa época surgem em Portugal em relativo contra-ciclo, como aconteceu, aliás, com a proposta inicial que visava alterar

o modelo de administração das escolas, com a proposta da “área-escola” ou com a adopção da avaliação formativa enquanto principal modalidade de avaliação no ensino básico. Paradoxalmente, a nossa integração na então Comunidade Económica Europeia não se repercutiu nas políticas sociais do mesmo modo como se repercutiu na economia. Neste caso, a ideologia neoliberal teve uma tradução concreta nas privatizações e na redução da intervenção do Estado. Na educação superior e nas “escolas profissionais” também se permitiu a expansão da iniciativa da chamada sociedade civil e se apregoou a retirada do Estado. Entretanto, em algumas áreas das políticas sociais, como foi o caso do ensino básico, algumas medidas foram ainda marcadas (conjunturalmente) pela relativa expansão de direitos referenciáveis ao modelo de Estado-providência – expansão de direitos para a qual, do meu ponto de vista, parecia apontar a adopção da avaliação formativa (mais tarde desvirtuada pela prática de muitas escolas) e a implementação de programas de combate ao insucesso escolar e de consolidação da escola de massas, como o PIPSE e o PEPT.

A demonstração dos efeitos (não-sincrónicos e não-miméticos) que decorrem de algumas políticas levadas a cabo pelos países que têm mais poder de condicionar a agenda educativa a nível global ganha alguma consistência quando verificamos que, após duas décadas de hegemonia ideológica neoliberal, só agora os discursos públicos relativos à educação (e as próprias políticas educativas) começam a adoptar, também entre nós, os pressupostos desta ideologia. Por isso, uma certa ideia de avaliação da qualidade da educação está fortemente marcada por uma visão neoliberal e neoconservadora (ainda que, algumas vezes, paradoxalmente, levada a cabo por governos que ideologicamente se situam mais à esquerda).

O que é de estranhar em Portugal é que este “atraso”, relativamente ao que constitui

o mais recente ciclo das políticas avaliativas iniciado ao nível dos países centrais, não parece estar a ser aproveitado para reflectirmos sobre as consequências mais negativas destas políticas – o que, aliás, muitos desses países já fizeram. O que poderia ser uma vantagem, para evitarmos cometer os erros que outros já cometeram, poderá transformar-se numa outra desvantagem – esta sim, sintoma de mentalidades pouco permeáveis à reflexividade crítica e que, por isso mesmo, poderão ser mais facilmente persuadidas pelos arautos tardios do “pensamento único”. Neste sentido, e no contexto desta ideologia, a chamada avaliação da qualidade da educação tem significado sobretudo uma estratégia para levar a cabo uma certa (re)meritocratização e elitização do sistema educativo, com o consequente aumento da selectividade social.

Não contesto a necessidade de fazer uma avaliação das escolas, dos professores e dos alunos. Creio mesmo que essa é uma prerrogativa do próprio Estado democrático. Não posso, no entanto, defender mecanismos de avaliação das escolas que pretendam “medir” apenas desempenhos cognitivos ou aspectos instrumentais, deixando na penumbra uma série de outras dimensões educativas, entre as quais, a promoção de uma concepção ampliada de cidadania e uma visão crítica do mundo e da vida. Defendo, por isso, que a escola pública com qualidade só pode ser uma escola simultaneamente democrática e com elevadas possibilidades de propiciar aprendizagens efectivas em termos científicos, técnicos e humanísticos. A sua qualidade é, assim, uma qualidade não apenas científica, mas também pedagógica e democrática – e a avaliação destas “qualidades” não se pode resumir à aplicação de testes estandardizados ou a outras formas de avaliação externa.

O predomínio destas formas de avaliação constitui um exemplo paradigmático de como as políticas de avaliação podem constituir (e têm constituído nas últimas décadas) um retrocesso extraordinário relativamente aos avanços mais substantivos da teoria da avaliação.